segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

As Imperfeições

"O segredo da satisfação é admirar as imperfeições". Essa brilhante filosofia acerca da felicidade conjugal, ouvi certa vez de um velho sábio, durante minha adolescência. A ironia é que ele era cego. Como se escutara nossos pensamentos, já antecipava: "Ah, meu filho; há muitas coisas que não precisam de olhos pra serem vistas".

Esse senhor morava numa casinha de madeira, afastada da cidade. Cheguei lá uma vez durante um passeio de bicicleta, pedindo por um copo d'água. Ele me recebera com muito carinho, e logo começamos a conversar. Percebi que era muito solitário, conquanto dissesse ter esposa. Perguntou-me se era compromissado também, então lhe contei sobre minha extrema exigência em se tratando do sexo oposto... coisa de adolescente idealista. Foi quando me apresentara sua filosofia, à qual aderi no ato. Daquele momento em diante, o velho ceguinho tornou-se meu mestre - e eu deveria pôr em prática seu ensinamento. Pediu, então, para que eu voltasse lá e lhe contasse os resultados.


Nos dias seguintes, conheci algumas meninas... diferentes. Optei justamente pelas que sequer notava nos dias anteriores, como a jovem magérrima que sempre me observava nas aulas de canto. Convidei-a para comer algo após a aula, e ela topou sem ouvir a proposta. Levei-a a uma lancheria mesmo - não queria transcender as etapas de aprendizado. O garçom chegou e eu pedi um sanduíche de frango, enquanto ela, calada, apenas me observava com um sorriso seco nos lábios. "E a senhora?", disse o homem, fazendo-a acordar. "Não, obrigada, não quero nada.". "Nem uma água?", retrucou o rapaz; "não, nem uma água".
- Você não tá com fome? Já é quase meio-dia...
- Não...
- Podia ter me falado... iríamos a outro lugar...
- Não, tá tudo bem, eu só vim te acompanhar mesmo.
- Estranho, não ter fome ao meio dia...
- Eu não costumo ter fome...
- Como assim?
- Eu não sinto fome... comida me dá vontade de vomitar.
Eu tive sorte de meu sanduíche não ter chegado ainda, pois teria me engasgado.
- Minha mãe diz que tenho anorexia, mas não sei se é verdade - continuou a estranha jovem.
- Anorexia? Meu Deus! Você não se trata?
- Não quero. Eles vão mandar eu comer, tenho certeza...
- Mas você tem que comer! Senão vai morrer!
- Vou morrer é se comer essas coisas que vocês injerem... gordura, óleo, açúcar, carne, ugh...
Nesta hora meu sanduíche chegava. Eu não conseguia imaginar como alguém poderia negar aquela maravilha culinária, mas talvez devesse ser mais cauteloso diante de minhas hipóteses.
- Vamos, prova um pedaço...
- Ah, não, obrigada, mesmo...
- Vamos, por favor... só um pedacinho...
- Não quero mesmo, não posso comer isso...
- Ah, vamos lá... por mim, vai? Só um pedacinho!
- Ain... tá bom...
Senti-me muito poderoso ao convencer aquela jovem doentia a comer algo. Ela abusou da cautela ao morder um mísero pedaço do meu sanduíche, sequer atingindo o frango. Mastigou com muita calma e sob expressões de nojo absoluto. De repente, vi-a esverdeando; cheguei a pensar que era frescura, mas então...
- TO PASSANDO MA....
Seu vômito completou a palavra sobre o meu formoso sanduíche de frango, quase intocável. Era um vômito aguado, pouco esverdeado, pouco amarelado... creio que havia 90% de bile naquela mistura homogênea. Senti uma ânsia quase incontrolável ao ver a lastimável cena junto de todos da lancheria, inclusive o garçom, que parara com sua bandeja no meio da lancheria, olhando incrédulo para a moça e seu vômito anoréxico. Levantei e saí sem dizer uma palavra.
Uma semana após, conformei-me com a idéia de ter sido apenas uma casualidade, uma infortúnia, uma má escolha. Saí com uma segunda moça, da qual todos tinham receio no colégio por seu histórico agressivo. Tirando tal comportamento, não era lá de se jogar fora. Sem levar em conta os comentários, e apostando na filosofia do velho cego, convidei-a sem medo algum para irmos ao cinema, o que topou na hora e sem qualquer desafeto. E fomos naquela mesma tarde assistir ao badalado "O Sexto Sentido". Senti, confesso, um certo arrepio desde as primeiras partes, mas o clima fora quebrado logo na cena da barraca, quando ele acende a luz e nota uma fantasminha vomitando ao seu lado. Quando finalmente consegue sair, dirige-se lentamente até a barraca, sob a qual a jovem ainda deveria estar. Neste momento, a doida ao meu lado descontrola-se e berra na sala à toda garganta: "SAI DAÍ, SUA VACA! APARECE SE TU É BEM MULHER!"
As vaias e os risos misturaram-se ao clima de suspense da cena. Foi difícil acreditar que aquilo estava acontecendo. Apavorado, evitei olhar para sua face, o que, de fato, não foi uma boa escolha: "E VOCÊ, SEU FRESCO! TÁ COM MEDINHO??? POR QUE SAIU DE CASA, ENTÃO? POR QUE NÃO FICOU COM A MAMÃE EMBAIXO DO COBERTOR, HEIN, FRUTINHA???!!!

As vaias aumentaram e as risadas direcionaram-se para mim, assim como todos os olhares ao redor. Levantei-me e saí, sem dizer uma palavra, mas com a aparência de uma beringela apodrecida. Seguindo seu conselho, cheguei em casa e enfiei-me debaixo do cobertor.
Quando acordei, as paredes da garagem estavam pichadas de meu nome com uma caveira ao lado, e minha bicicleta estava completamente destruída na calçada.

Eu fracassei. Era evidente que não estava preparado para seguir as palavras do velho e sábio cego. "É certo que vou ser infeliz", concluía. No entanto, era preciso cumprir minha palavra, e voltei lá na tarde seguinte, com minha bicicleta deformada. Cabisbaixo, cumprimentei-o, tendo-me oferecido uma xícara de chá. "Não, obrigado", respondi-lhe, puxando uma cadeira e sentando-me em frente à casa próximo do velho, que, por trás de seus óculos escuros, parecia enxergar mais do que todo mundo. Antes de qualquer palavra minha a respeito do motivo que me trouxera lá, contou-me uma história.
- Quando eu tinha a sua idade, meu filho... ah, eu era muito questionador. Não deixava jamais me dizerem o que fazer sem antes saber por que o deveria, nem respondia a nenhuma pergunta que me não fosse conveniente... até que um dia, um belo dia - dizia com expressões faciais que acompanhavam o ritmo do relato -, me chamaram do exército. Eu tinha só dezoito anos! - e tomou um gole do seu chá amarelado. Quando lá cheguei, um tal capitão me recebeu, e de pronto já me mandou tirar os óculos. Eu não fiz nada. Ele repetiu a ordem e eu nem dei bola. Indignado, mandou chamar um tal tenente para que me convencesse, pois não tinha paciência com desordeiros, e iria acabar usando de força. O tenente se aproximou, senti, e resolveu partir para a diplomacia: "por que você usa esses óculos, menino?", "pelo mesmo motivo que você usa ceroulas", respondi convicto. Não esperava que ele compreendesse, e de fato não foi bem assim que as coisas terminaram: recebi um tapa no ouvido direito que até hoje me dói - disse botando a mão no ouvido esquerdo -, e passei os dias seguintes limpando o banheiro dos soldados. Todos me caçoavam. Na hora do banho, roubavam meu sabão, e eu passava horas procurando-o pelo chão escorregadio embaixo da água gélida e mal cheirosa que nos era despejada sobre a cabeça. Maus bocados passei, meu jovem... - disse tomando outro gole. Engasgou-se e cospiu para bem perto de mim, o que me fez afastar um pouco a cadeira. Continuou: Eu já nem lembro quanto tempo fiquei naquela situação, meu filho, mas vou lhe dizer: foi lá que aprendi tudo que sei de importante hoje. Não lhe digo que foram os milicos que me ensinaram, ah não! Foi a própria vida, a situação armarga em que me encontrava. Antes de limpar o banheiro imundo, pensava no quão límpido ficaria após meu serviço. Antes de comer a galinha crua, pensava no bem que sua carne me faria e tudo se acertava. Quando saí de lá, já tinham se passado tantos meses, talvez anos! E eu precisava me relacionar, entender mais sobre meu corpo. Eu poderia ter perdido tempo e experiência escolhendo a dedo como você, mas então lembrava do fétido banheiro dos soldados, do banho gelado sem sabão, da galinha sangrenta, do tapa no ouvido... foi assim que cheguei a essa conclusão, meu jovem.

Eu segurei as lágrimas, lembro, olhando para cima, como se fizesse alguma diferença. Ele sorriu, como se estivesse enxergando tudo. O clima de emoção fora quebrado com a chegada de uma mulher loira, com um corpo semi-escultural e um andar provocante. O velho já se antecipou: "minha esposa... Oi, minha velha!", e a jovem moça respondeu "Olá meu bem..." e, percebendo minha presença: "oi querido! Sinta-se à vontade!", disse, entrando na casa. Meus olhos não podiam acreditar no que viam. Deixando uma sacola sobre a mesa, dirigiu-se ao banheiro, ao passo que ainda lhe acompanhava com a visão. Com a porta aberta, vi-a de costas levantando a tábua da patente, e, para o meu absoluto desespero, começou a urinar de pé.

O velho, como se enxergasse tudo, já me lia o pensamento:
- As imperfeições, meu jovem! As imperfeições! - dissera-me com um riso espaçoso nos lábios murchos.
De fato, há muitas coisas que não precisam de olhos para serem vistas.

5 comentários:

Anônimo disse...

Mila diz:

Eu ri.

Sou péssima em comentários. Enfim, você tem problemas. É, acho que é isso.

:D

Lucia Mendes disse...

OLHA A MALA AQUI DE NOVO!!!! Achei! Achei! haushaushuasu
Outro neologismo...
Onde está Wally????

Lucas Di Marco disse...

Olha aqui, sua infiel: tuas observações inoportunas obrigar-me-ão a denotar patifúrdias corrobóricas neologísticas acerca da hermiárica linguagem dos hebreus antigos; isto é, se fosses uma macarena culta, saberias de berço que “injerem", em hebraico medieval, já significava “moro em Jerusalém", ou ainda "tenho pênis avantajado", afirmações tidas como sinônimas na época referida. Mais uma vez ousaste ir de encontro à criatividade suprema do Nosso Barbudo, o qual não te há de perdoar JAMAIS!!!

Lucia Mendes disse...

Também te amo!!!! ;)

max disse...

Só faltou a revelação final que ele não era cego, e que, na verdade, a velha casinha abandonada era um puteiro, hsahuuhshuuhsauh.