quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Matei Meu Amigo Marcelo

Se estás com pressa, posso bem resumir minha confissão a uma só frase: matei meu amigo Marcelo, cravando uma lança de metal nas suas costas e pendurando-o após na janela, alinhado com o sol.

Agora, se quiseres ouvir minha versão, senta-te aí.

Eram cinco da tarde, ou perto disso, numa casa que, sinceramente, não conheço muito bem. Estávamos no segundo andar, dentro de um quarto muito grande; éramos os únicos na residência. Próximos à janela, demos seguimento a um diálogo muito delicado.
O sol estava se ponto e ele me olhou nos olhos, meio encurvado, com uma expressão de súplica. "Eu preciso morrer", dizia. E eu, como amigo, o tentava convencer do contrário. "Tu precisa me matar, cara... é sério"

Eu tentei negar tantas vezes; porém, a cor de sua face foi escurecendo a cada vez que o contrariava. "O mal cresce dentro de mim, tu não vê? Não vamos deixar ele tomar conta. Me mata, cara!"

Sob um árido sentimento de culpa, cravei-lhe uma faca ao peito.

Marcelo ajoelhou-se - lembro bem! - e permaneceu encurvado por vários segundos. Quando o arrependimento começou a diluir-se nos meu sangue, através dos meus olhos,
o louro rapaz levantou o dorso, encarou-me com um olhar penetrante e avermelhado, dizendo as seguintes palavras: "não foi suficiente"

Apontou para uma lança brilhante de metal, muito afiada e com o comprimento de dois metros. Arranquei-a da parede; Marcelo virou-se, e então cravei a lança prateada em suas costas, atravessando-o e saindo por seu peito. Senti a dor que lhe atingia, mas já era tarde: precisava concluir a tarefa. Pela lança, levantei-o e pendurei seu corpo agonizante na janela, ajustando o ângulo com o sol poente. Deixei-o ali, pendurado, para que o mal queimasse para sempre.

O Jonas entrou no quarto. "Já fez?", e eu respondi "sim". Era hora de se livrar das provas. Foi exatamente neste momento que algo nos passou pela cabeça: será que alguém iria entender o nobre motivo do crime?

Meu cúmplice e eu descemos as escadas com muita pressa; era preciso limpar tudo que nos incriminasse. Começamos por uma garrafa de coca-cola na cozinha. Depois, Jonas começou a abrir as portas de todos os cômodos para verificar se havia algo, e eu bradei "Não, cara, te liga! Tuas impressões vão ficar na fechadura!" Ele respondeu algo meio contrariado, mas limpou as fechaduras com sua roupa.
"Perguntei para ele: e agora? Por onde fugimos?", tendo obtido de meu companheiro a singela resposta: "Pelo Ártico". Um sorrisinho no canto de sua boca sugeria uma sábia ideia. Não compreendi, mas segui-o escada acima; subimos para o terraço, onde um pátio descoberto nos aguardava. O muro desta gigantesca área dava para um terreno muito longínquo, recheado de árvores, onde ninguém nos veria. Entendi (em partes) o tal "Ártico" de meu cúmplice Jonas: mas não sei explicar...
Antes, lembramos que havia algo lá embaixo do que precisávamos nos livrar. Corremos escadas abaixo, por três andares, até darmos de cara com a janela, que nos mostrava o portão da frente a uns 20m dali. "Se alguém chega agora estamos ferrados", disse eu. Nossa barriga gelou quando um carro preto parou na frente do portão, abrindo-o. Eram meus pais.

- E agora, cara? E agora? - disse eu, agachado, correndo para um dos quartos do primeiro andar. Jonas foi atrás.
- Não sei! Agora não sei!
Meus pais desceram no pátio, após estacionarem, e entraram na casa. Levariam algum tempo até verem a janela do quarto do andar de cima, e este era o tempo que tínhamos de liberdade. Minha mãe andou pelo corredor e nos encontrou no quarto do térreo, próximo à cozinha, onde discutíamos nosso fracasso. "Oi guris!" disse ela, alegre. Cumprimentamos. Quando ela se afastou, desabafei:
- Na hora que eles descobrirem vai ser f***.
- É... não tem o que fazer...
- Eles nunca vão entender o motivo...
- Nunca...
- O pior é imaginar o que os pais dele vão sentir também...
Ao falar isso, senti um calafrio. Era medo. Respirei, olhei para a janela do quarto, aberta, e continuei:
- Se o Marcelo tivesse pelo menos deixado uma carta explicando os motivos...
- Não adianta... homicídio é homicídio - respondeu meu sábio cúmplice.

Marcelo Horst (1989-2010)
Neste momento, não sei bem por quê, tentei pular a janela do quarto; enquanto o fazia, ouvi ao fundo um som muito forte de strings e guitarra aguda. Reconheci a música Carry On, tema do meu despertador, que me acordou antes de eu tocar o chão do pátio.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

A Reforma Infernal


Antes de graduar-se em medicina, direito, filosofia, letras e economia, meu velho companheiro Alberto Pastelina chegou a cursar Teologia por cinco semestres. Surpresa foi, contudo, o fato de ter sido expulso após a apresentação de um trabalho, em forma de teatro, cujo roteiro os apresento abaixo – não sem sua autorização prévia. Malgrado tenha lhe ocasionado tal punição, seu sucesso seria evidente em casas noturnas e, por que não, no programa Zorra Total.

Na serenidade do Divino Escritório, abre-se a porta às pressas:
- Senhor, Senhor!
- Mas que... o que é isso, Gabi? Entras assim, sem bater?
- Perdão, mas é urgente! O Pedrinho tá com problemas no Hall, parece uma rebelião!
- Outra? Caramba, está virando moda.
O Divino levanta de sua poltrona e segue, nem lento, nem apressado, até o Hall de entrada. Ao chegar, encontra pessoas debruçando-se no gigantesco portão de ferro pelo lado de fora, escandalizados e, de certa forma, vandalizando o ambiente.
- O que está acontecendo por aqui, Pedrinho?
- Bah, eu não agüento mais. Esses três aí tão pedindo pra descer... um diz que não morreu, o outro que morreu de leve e o último que já morreu várias vezes na vida e nunca veio parar aqui.
- Eles se conhecem?
- Sim, são tudo crente.
- Crente o caramba! Eu sou devoto! DEVOTO! – urrava de trás do portão um dos recém chegados.
O Divino olhou para o rebelde, que se calou.
- Deixe-o entrar.
- Mas senhor...
- Pedro;
- Sim, Divino.
A porta se abre; os três sujeitos ficam imóveis. O Divino ordena que o “devoto” se apresente, e este, receoso, dá um passo para frente.
- Chegue mais perto. Mais um pouco. Mais, mais...
O sujeito, de cabeça baixa, aproxima-se até dois metros do Divino, que se pronuncia.
- Você está morto?
- Não, senhor.
- OK. Pedro, mande-o de volta.
- Como assim, Senhor?
- Mande-o para a Etiópia. Reencarne-o numa prostituta aidética e não o deixe morrer até que o Egito vença uma copa.
- Mas senhor!
- Pedro!
- Sim senhor.
O infeliz, aos berros inconformados, é obrigado a descer a Escadaria da Luz. Os dois restantes jogaram-se no chão de instantâneo, como se simulassem a própria morte. O Divino olhou para Pedro sob seus óculos circulares e retornou ao escritório.
Sentado na sua poltrona novamente, chegou a fechar os olhos por alguns minutos; não obstante, o insistente telefone o alerta.
- Hã, Gabinete Divino, em que posso ajudar?
- Senhor, aqui é Davi, Secretário de Guerras. Estamos com um probleminha no...
- Oriente Médio?
- Isso mesmo, Senhor, mais especificamente em Dubai. Tem uma multidão de vagabundos, todos trajados de vermelho. Estão saqueando a cidade, totalmente descontrolados!
- Ora, isso é peixe pequeno, Davi. Lança um “pára-te quieto” aí que resolve.
- Mas Senhor, o que eu faço?
- Sei lá, taca uma banana, lança uma pedra, te vira!
Desligado o telefone, este volta a tocar.
- Que é, Davi?
- Não Senhor, aqui é do Ministério Interativo. Ligação do Limbo para o Senhor, posso passar? – disse uma voz feminina enjoada.
- Ah, sim, Madalena, por favor. – e a música de espera (Ave Maria) passa a ser tocada ao som das harpas angelicais.
- ALÔ!
- Pois não.
- Ah, fazido! Não reconhece a voz, agora?
- Fala, Lucy.
- É o seguinte, ô “iluminado”. Tô cansado desses sujeitos que você manda pra cá sem avisar. Já bastava Barrabás, Nero, Calígula, Hitler, Enéias...  até a Dercy Gonçalves...
- Ela que quis ir, eu bem que tentei...
- Tá, tá... mas por falar em Hitler, ele quer ter um papo contigo, lá vai. – Antes que o Divino se posicionasse, uma voz levemente aguda e determinada, com sotaque ariano-farofa, pôs-se ao telefone:
- Hallô!
- Fala...
- No entende porque que tem que estar aqui, uma vez. Wenn Mussolini está aí, se fez ele muita mais coiso que eu!
- Mussolini não está aqui, Adolfo, ele foi reencarnado em um porco napolitano há anos. E ele não fez mais que você, não senhor...
- Ora Scheisen! Como ousar! Ser eu não tão má assim como diz aí fora, tava só brincando mas non comprende, uma vez!
- O seu julgamento já foi feito, Adolfo. Sinto muito.
- Ach So Scheisen! Ich como Führer declarar GUERRA ao senhor!
- Ah, Adolfo... não me amola... passa pro teu dono aí.
- Dono? DONO? – e o telefone é arrancado de Hitler, que segue gritando atrás, cada vez mais afastado.
- Demo?
- Sim, peguei do Fritz aqui... é de doer o ouvido esse louco cantando toda manhã... “um barril de chopp, é muito pouco pra nós!”. Olha aqui, branquelo: ou tu trata de aumentar a burocracia aí, ou vou começar a mandar uns “gente boa” aí pra cima também, morou?
- Tá, rapaz, eu vou trabalhar nisso... Cara chato, viu.
O Divino desliga o telefone e já o pega novamente, discando o ramal 667.
- Departamento de Incêndios e Desastres Naturais, em que posso ajudar?
- Oh, me enganei. Qual é o número da DAC?
- 666, Senhor.
- Obrigado – diz, e disca o número.
- Departamento Amigos do Capeta, em que posso ajudar?
- Ô Raulzito, é o Divino aqui de cima.
- ÔÔ meu pai! A que devo a honra?
- Eu quero uma relação dos próximos que vão pro Limbo antes de sexta-feira... parece que o chefe lá anda meio contrariado...
- Ah... vou fazer isso agora mesmo e te envio por um moleque, ok?
- Please malandro.
- Já é, chefia. Me dá dois minuto aí.
De repente, bate à porta o possível moleque. Divino grita “Tá aberta”, e entra um sujeito esfarrapado, totalmente sujo e mal cuidado.
- Pai...
- Quê? Jesus? Ah, filho, já disse pra você trocar essas roupas!
- Ah não, não dá, véio... se pá eu vou morrer nessa beca...
- Hum... manda então.
- O tio Raul mandou entregar pro senhor esses esquema, mó loucão ele, né não?
- Filho, você não precisa ficar fazendo favor pra todo mundo... já te falei que isso tá errado.
- Ah qual é, meu... to pela paz...
- Sei. Tá, me passa logo isso.
Jesus passa um pergaminho com milhares de nomes anotados à tinta.
- Paizão, descola uma prata aí pro teu filhote...
- Quê? Qual é, Jesus? Já tá crescidinho pra ficar me explorando...
- Pôôô, me vaiou... eu também sou filho de Deus...
- Não precisa me lembrar... vai, pega. Vai tomar um café que você tá pregadão.
- Jááá só valeu!
Ao sair cambaleando seu filho, Divino passa a analisar com os olhos o tal pergaminho. Risca alguns nomes, sublinha outros... até que algo lhe chama muito a atenção. Eufórico, pega o telefone e disca 666 com urgência.
- Raulzito?
- Sim senhor, foi mal pelo moleque, mas ele insistiu tanto que não consegui negar...
- Tá bom, esquece, tenho algo sério a tratar. Sabe esse número 2235-A?
- Um minutinho... Sim, P. Barradas... que que tem ele?
- Qual o delito desse?
- Negligência. É o segundo cachorro que ele deixa morrer, e também desapareceu um gato.
- Evidências?
- Diz que viaja muito...
- Raul, libera esse cara aí.
- Sim senhor...
- E mais, esse aqui: D. Pimentel, número 8686-B?
- Esse aí... peraí... ah, suspeitam que anda com tendências neo-nazistas, inclusive visitando a terra do Füher...
- Meu, libera esse guri. Ele é mais santo que eu.
- Ahn, tá bom. Mais alguma coisa, senhor?
- Sim. Esses que pisaram em formiga, tacaram pedra na vidraça do vizinho, colaram chiclete na poltrona do professor... cara, todos esses delitos mais baixos são passíveis de revisão. Quero que mande todo mundo pro purgatório até eu decidir o que fazer.
- Sim senhor...
- Que bom, que bom. É só por enquanto. Paz.
Ao desligar, estica as pernas sobre sua poltrona e cruza os braços atrás da cabeça, fazendo menção de descansar. Alguns minutos depois, o telefone o desperta novamente.
- Que é agora?
- Perdão senhor, é o Raulzito de novo... posso esclarecer só uma dúvida?
- Manda...
- Tem um aqui, de número 4760-C... eu não sei como classificar...
- Delito?
- Ah, diversos... cegou uma vaga, quebrou espelho alheio, atrapalhou 97% das suas aulas...
- Só isso?
- Não, tem mais um em especial que me chamou a atenção...
- E qual seria?
- Ele andou fazendo uma interpretação sarcástica do novo testamento, inclusive usando todos os nossos nomes num texto bobo e de baixo calão. Parece que publicou num desses correios virtuais aí, e tem gente até de Israel dando uma lida...
- Hum... já te ligo.
O Divino levantou-se, foi até uma estante e retirou quatro livros. Passou os olhos em todos. Após, sacou uns relatórios de uma gaveta, e novamente os conferiu. Passados vinte minutos, saca o telefone e disca 666 mais uma vez.
- Sim senhor, alguma conclusão?
- É, Raulzito... esse aí não dá não.
- Entendo, senhor. Obrigado e até logo.
O Divino põe-se, então, na posição de descanso outra vez; porém, antes de pregar os olhos, inclina-se à estante. Tira o telefone do gancho.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Aquele Ponto De Vista

Olha lá! Bradou o jovem, coberto de admiração,
Aquele é o tal planeta, então? E o mestre diz:
Sim, o próprio. Em breve chegaremos lá.
Conte-me sobre os nativos, se o tempo ajudar!

Filho, são eles bravos, malígnos. Como animais.
Pensam um pouco, dizem, mas cuidai:
Não vale o contato a pena, nem visual
Por terem uma ilusão pobre demais
De que únicos estão no espaço sideral.

Já não assim pensamos? E assim agimos,
Com egoísmo na penumbra ignorante?
Pois sim, há muito. Evoluímos.
Vivemos já só pelo instante.

Enquanto são estes primitivos,
Morrem e matam sem objetivo
Vivem tão pouco e tão sozinhos
Em meio a grandes multidões.
Vestem-se mal, comem demais
E sem motivo, bebem sem sede,
Pecam por suas ações.

São selvagens! Selvagens são!
Tratam ao próximo de antemão
Como inimigo fosse.
Alimentam uma crença tola
Que contradiz a própria história
E pela qual se aniquilam!
Ah, que gente infeliz,
Não me admira que ris!
Pois se ferem, e ferirão
Pela própria imaginação!
Acabam com o que comem,
Comem o que respiram
Respiram os próprios males,
Que visíveis, de tão cinza,
Flutuam, no ar, nos mares!
Queimam suas mães,
Que lhes deviam ser queridas!
Eles queimam as próprias vidas!

Diz-se, lá também há água
Que de tantos, pouca se faz
Porque a tratam por doce!
Embora tenha de doce nada
Fazem dela - gentes más,
Propriedade privada.

E quanto ao mundo em que eles vivem?
Ah, é este tão bondoso.
Que até agora não lhes pune!
Porém não penses ser ele imune
Ao seu instinto perigoso.
Morrerá tão fácil em breve
Pois de tudo, deu comida
A criaturas repugnantes
Que de tão irrelevantes
Deram-se por raça vencida
E por vingança nada leve
Destroem quem lhes deu a vida.

Não bastasse a própria morte,
Que há muito tempo planejam
Odiando-se a si mesmos,
Julgam ser um ser tão forte
Por mais primitivos que sejam.
Surgiram tão há pouco, agora,
Que ainda diz 'maldita hora
Que os fiz!', a própria terra.
Arrependida, por ora berra.
E contra si própria ela luta
Sendo eles a parte dela
Mais podre, e a mais bruta.

Filho, olhai pela janela:
E não hemos de nos iludir
Pois nada lá nos fará sorrir
Como uma simples estrela bela.

Mestre, tão logo chegaremos
(quão azul é este terreno!)
Após tantos e tantos anos.
A despeito do que foi posto
Em que pese o seu desgosto
Estou um tanto ansioso
A conhecer os tais humanos!

L. Di Marco

sábado, 11 de setembro de 2010

The Stalker (#2)

"E do meio do mundo prostituto, só amores guardei ao meu charuto"
Se não leste a primeira parte, não sigas.


Parte 6: A grande arte da profecia, em sua mais singela e inocente forma

Sentados no banco da praça, entre dois amigos quase sanguíneos, retratou-se a cena do que outrora lestes com detalhes e planos e esperanças... fez-se uma profecia. A de que, por puro sentimento inexplicável, o grande empecilho não tardaria a desmoronar, mas por conta própria, sem influência negativa. Ademais, este foi um dos assuntos discutidos: deixar que a natureza se suceda. Tanto quanto cresceu o primeiro musgo antes do gigante hotspot que hoje destruimos com grande vigor.
Não sei qual dos anjos malignos me ouvia, porquanto não fora minha surpresa menos eufórica que a de um cão no reveillon.

Parte 7: Mientras la observación diaria, aunque sea todavia gradual 

Dizia lá exatamente o que havia sido previsto um dia antes: o afastamento. E o coração (o próprio músculo estriado e involuntário) agitou-se com incredulidade; os olhos (os globos traiçoeiros) lubrificaram-se por si; e o leve sorriso involuntário invadiu-me o canto esquerdo da boca, como se um grande prêmio o antecedesse, e, ora, não pude disfarçar a satisfação. Eis-me, um ser humano completo, tanto quanto vós.
Não se pôde aguardar: e duas ligações foram feitas. 'Que tom alegre', me foi dito em ambas. Quanta discrição, meu amigo, dizia eu a mim mesmo. É provável que, fosse outra ocasião, fogos iluminariam o céu metropolitano. Pois, adicionou-se-a, tendo em vista o doce sentimento da liberdade mútua. Frases de incentivo à nova condição liam-se em suas próprias anotações, e isso tudo preocupava tanto quanto confortava; inexplica-se. Ainda assim, o dia mostrou-se tão leve quanto a sua razão.


Parte 8: A ansiosa espera, facilmente comparada ao sionismo

E assim foi a tarde de estudos. Sob consultas frequentes à rede. Por que será?

Parte 9: A primeira grande decepção

Como estivesse no caminho certo, uma pedra...
"Nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas..."
Tornou-se uma pedra em meu caminho, um sujeito que sequer conheço e ao qual não atribuo valor algum. Aliás, em pensar no mal que a ela proferiu para que a decisão fosse tão de súbito tomada... um certo rubor odioso me sobe à face. Se dantes neutro, já então muro abaixo - que dúvida! Era só uma questão de tempo.
O tênue laço que os unia fora reatado; resta saber a tensão que há de suportar. Como uma corda no lustre, que outrora estendia um graveto, e agora procura equilíbrio sobre uma árvore inteira. Não mais sei a validade de ser "aquele que puxará o peso" afim de derrubar-lhe. Na outra mão, vejo-me com a mesma consciência retraída e favorável à ação natural, cuja lei, se age sobre uma colmeia, destinará um relacionamento. Outrossim, um longo passo adiantou-se, não sendo mais dois estranhos - e tal atitude fora tomada legal e rigorosamente dentro das leis sociais (durante o breve período de liberdade).


Parte 10: A primeira grande observação

Concedidas algumas regalias, pude observar com mais detalhes o brilho do alvo, e constatei algo tão delicado. Não fosse a minha péssima interpretação masculina, eu poderia JURAR que seus olhos são de cores diferentes. Sim: um do outro.

Parte 11: A grande inspiração a la Vinicius de Morais e Álvares de Azevedo (não mos comparando, por óbvio)


À noite me deixaram só, mas só já estava há muito. A tecla F5 fora minha companheira por algumas horas, até um instinto incomunicável tocar-me o peito, o que me levou a pegar uma cadeira e um banco. Coloquei-os ambos no pátio de trás. Trouxe comigo uma malzbier, mais doce que chocolate em pó, por pura falta de opção; pus-me a abrir, o que me deu um certo trabalho. Servi-me da doce negra e de um caderno, e junto de uma caneta os coloquei em cima do banco. Algo veio-me à cabeça: o que não fazia há tanto; ora, era mesmo uma ocasião deveras alternativa, então prontifiquei-me a pegar o charuto velho que guardava há três anos em uma gaveta obscura. Observei-o com o entusiasmo de um pré-adolescente diante de seu primeiro copo de cerveja, conquanto já não fosse lá uma novidade. O fósforo foi encontrado tanto depois, que se procurasse fazer fogo com gravetos teria ganhado alguns minutos. Pois, sentei-me na bruma da penumbra. Não citei o violão? Bem, está citado.
Passei a tocar uma música que não existe, a despeito do que me disse um futuro doutorando: "agora ela existe". Meu charuto traiu-me algumas vezes, posto que o sabor fosse, de tão ruim, peculiarmente saboroso. Brinquei com a fumaça densa que formava figuras abstratas diante da única luz acesa. Era como um sonho - efêmera e dispersante como um sonho. Goles e acordes após, algo triste deu-se à luz, até acabar o ardido e intrigante charuto com o qual não me acostumara ainda. Antes disso, fotografei - tanto o banco quanto o charuto em uso, não obstante não será esta aqui exposta. Um cenário depressivamente "bossa nova" (bem notado, aliás!).
E não fosse os sons do espetáculo dos ascendentes de meu companheiro viajante, algo triste vos apresentaria aqui. Isso não me abalou, de fato; não se faz um mundo em um dia, e não menos é a música para mim.

Parte 12: A segunda grande decepção

Apaguei o charuto antes do seu quinto final na própria garrafa. Desfiz-me das cinzas. Alcancei o objetivo ao me sentir sessenta anos mais velho - uma sensação ímpar. Pus-me a olhar ao redor. Foi quando baixei o pomo e concluí: sou um novato; não fosse, teria servido whiskey, e não cerveja.

Parte 13: O início, ou o fim?

O farol indica o caminho, sim, mas não por indicar - é preciso uma razão, ainda que ínfima. Um navio ou um bote: que diferença faz a quem se afoga, porquanto um vira o outro, e ambos viram na água?
Só o tempo não basta; é preciso um farol aceso. E eu o vi: um farol ofuscante no horizonte. Análogo, mantive meus pés atados ao chão da fina areia costeira enquanto o sol se punha. Senti a terra tremer sob meus pés.

E uma vez que a terra treme, há de vir um terremoto. Fato.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

A Tradição Secular

O concunhado de um conhecido de um amigo meu me foi apresentado num almoço tardio, durante o qual tomei nota de uma história secular de seus antepassados, que se resume a seguir.

Aqui é o "a seguir" mencionado no último parágrafo. E não menos localizado estava um dos primeiros nomes da família, que fora um dos garimpeiros que cedo chegaram na região, em meados do século XVIII. Diz-se que fora um homem muito especial, razão pela qual lhe foram atribuídos inúmeros casos - todos místicos. O velho era uma lenda.
E, por assim dizer, jurava-se na região até há pouco que, antes de partir, ele havia descoberto uma suposta caverna - ele mesmo a descrevia - a qual jamais fora encontrada. Visitava-a quase que diariamente, conquanto jamais tenha mencionado sua localização, e tampouco lhe perguntavam: conheciam-no bem. Certo dia, o velhinho sumiu por meses. Sem explicação, voltara dois dias antes de morrer, entregando ao filho mais velho um baú retangular de bom volume. Um caixote arcaico de metal denso, bordado a ouro nórdico e com o símbolo que se tornaria o então brasão da família. Ao entregá-lo, disse em claras palavras:
- Meu filho primeiro, não abrais este baú, jamais, sem apto julgamento. Repassai-o, sim, ao primogênito.
- Ora, porém, meu pai querido, que há dentro dele, se não lhe ouso ou abuso indagar?
- Qual! Eis o mistério, meu jovem. Que é já de todo vosso.

Sem dizer mais nada, partiu para sempre. Diz-se que morreu de "Dever Cumprido", de acordo com os
médicos da época. Ninguém discutiu o desejo do velho, nem mesmo o primogênito, um simples artesão de quem muito pouco se sabe, a não ser que cumpriu a tradição, passando o baú para o seu primeiro filho nos fins do século XIX.

Este último era o seu trisavô.Repassara para o bisavô, que tampouco teve a coragem de desafiar a tradição, passando, assim, para o avô, que, nos anos setenta, chamou o pai do sujeito e lhe fez sentar ao seu lado. Puxou o baú de dentro de outro, muito maior, que jamais ninguém havia visto aberto antes, exceto o dono. Nesta ocasião, seu pai tinha doze anos recém feitos. Seus olhos brilharam quando viram o ouro nórdico reluzente, apesar do aspecto bicentenário, sendo manuseado com cautela.
- Meu filho, este baú me foi passado por teu avô, que recebeu do pai, e assim foi por gerações e gerações.
- O que tem dentro, papai?
- Um mistério, filho. Guarde este baú como se fosse a sua vida, e só o abra se se sentir seguro o bastante para destruir uma tradição de gerações e gerações... guarde-o bem e, se for o caso, passe-o para o seu primeiro filho, repetindo estas palavras, que jamais devem ser ditas de novo até este dia chegar.
- Sim senhor...

Em 1988, nascia o tal concunhado. A primeira impressão que tive ao vê-lo foi a de que ele definitivamente é um cara corajoso. Ainda no almoço, o garçom fingiu não o ouvir, por pura birra, apesar de lhe ter chamado em alto e bom som por várias vezes, e sem faltar-lhe com educação. Tal comportamento lhe causou certa indignação: foi até o gerente do restaurante, que nada fez senão uma breve promessa de observação. Ele voltou até o lugar onde estávamos, sentou-se sem pressa e não fora mais alarmante do que uma formiga no tapete. Segundos após, o chão encontrava-se coberto de cacos de vidro, massas, molhos, carnes variadas e alguns tipos de salada. "Acho que ele vem, agora", disse com um mísero sorriso no canto da boca. Nada lhe foi cobrado.

Na virada do milênio, ainda criança, seu pai o fez participar do tradicional rito.
- Filhão... esse baú pertenceu ao teu avô, que ganhou do pai dele, que ganhou do pai, do pai, do pai do pai... e agora chegou a tua vez.
- Pode abrir?
- Não! Quer dizer, não sei... só se tu tiver coragem... mas eu acho que é melhor passar pro teu filho...
- Tá bom.
- Mesmo? Então tá, pega aqui e guarda bem, tá?
- Sim.

Ao se afastar, lembra-se bem, repetiu o piá para si mesmo:
- Eu não tenho filho!
E abriu.

A pergunta que estás fazendo a ti mesmo é a mesma que fizemos às 13h daquele dia, quando já havíamos chegado na casa do tal sujeito que nos contava tão magnífica história.
 
- E o que tinha dentro, caramba??!!
Um silêncio fez-se e dominou a sala. O cara levantou do sofá, foi até um dos quartos e, dois minutos depois, voltou com um embrulho na mão.
- Isso.
- O que é?
Ele tirou a toalha que cercava o objeto.
- É um outro baú, pouco menor, e um bilhete. Diz para eu entregar para o meu filho.

Segundo nos disse, não teve e nem terá coragem de abri-lo. Outrossim, já preparou um discurso bem impactante para que, no futuro próximo,  seu primeiro filho não encontre lacunas espertinhas sem antes lhe pesar a consciência.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

The Stalker

Ou, literalmente, "o perseguidor". Nunca se imaginou nesta situação? Chega a ser assustador, malgrado seja a situação excêntrica e, de certa forma, excitante.
Segue o relato de minha primeira experiência nestes termos. Se desistires logo na primeira parte, és um ser humano normal (ou ordinário?).

Parte 1: A crua análise, como a de um lobo ao avaliar uma lebre

A jovem foi notada há meses atrás, durante o início de uma aula. A história é uma disciplina tão filosófica quando a própria filosofia, uma vez que esta é vítima dos homens, enquanto estes são vítimas daquela. E por falar em vítimas, vitimou-nos as centenas de exercícios inacabados acerca dos homens antigos. Nos seus íntimos, ninguém confessava a negligência - somente ela, a verdadeira vítima, foi quem teve a iniciativa de avançar e perceber que, das centenas de questões, mais da metade não condizia com seus gabaritos.

Nesta ocasião, sentou-se ao lado do narrador. E protestou. Os exercícios estavam de fato adulterados, e sequer o mestre havia notado. Ora, uma líder exemplar - não se admira sua postura límpida e enobrecida. Não houve outra reação: foi notada. E, a partir de então, dia após dia foi observada. No princípio, leves observações a nível masculino - um campo, pois, nada amplo; com o passar do tempo, foi progressivamente se mostrando mais e mais interessante.

Parte 2: Os primeiros registros sentimentais, consoante livros pré-realistas


O que outrora era ignorado, passou a ser seriamente admirado, conquanto fosse nada patológico. A cada frase de humor proferida pelos mestres, uma diferente reação lhe pertencia: se o contexto era infantil, meigo ou feminino, despejava um raro sorriso leve e brilhante, cujo preço não se avalia; se o assunto era promíscuo, porém engraçado, deixava escapar um envergonhado sorriso de canto, tímido e retraído, porém não menos belo. Quando o tema era, além de promíscuo, suportavelmente pesado, sua boca não se mexia: pelo contrário - desviava o olhar como se preferisse não ter ouvido ou participado de tal cena. Nada mais admirável!

Parte 3: As memórias puxadas do interior, como um flashback hollywoodiano


E de um ímpeto cerebral, imagens antigas vieram à tona - ainda mais antigas do que o dia das questões sem gabarito. Foi na classe de geografia que uma questão foi abordada: quem ousaria morar fora do Brasil. Uma mãozinha foi levantada no fundo da coluna de classes à direita da sala. Era ela. Indagada, respondeu onde lhe agradaria morar; ao que me recorda, foi dito "Austrália", e/ou alguns outros países europeus. Questionado o motivo, respondeu semelhante a isto: "A vida no Brasil é muito pouco valorizada". O silêncio ao redor da sala confirmou: ninguém estava esperando uma visão crítica tão bem feita partindo de uma menina aparentemente frágil e discreta. Seguiu com exemplos bárbaros, como o rapaz que foi eletrocutado na frente do Direito-UFRGS, e nada ou quase nada foi feito; as vidas tiradas por objetos fúteis, entre outras feridas por ela tocadas. Na época, lembro, virei-me para minha colega e comentei "temos uma revolucionária na sala". Nos dias de hoje, lembro-me com certo orgulho de tais declarações. O que mudou?

Parte 4: O abuso acovardado, como o do sociopata descrito na música Shy da Sonata Arctica

A situação começou a ficar crítica quando, de tanto insistir na irresistível tentação que é observar suas expressões faciais, belas e puras, como a de uma ideia fixa machadiana, ela notou. A crença é esta: ela certamente notou, e não há nada que possa desfazer isso. O que normalmente nunca me foi problema - a aproximação, o contato, a conversa, a proximidade - agora é um pesadelo, e cada vez mais distante: é tarde demais; e a jovem que desperta sentimentos estranhos em um sujeito estranhamente sentimental não é nem a mais bonita, nem a mais sensual, nem a mais chamativa... mas é a mais brilhante. E é isso que a torna a mais especial, acima de todas as qualidades dantes descritas: seu brilho misterioso.

Parte 5: O desfecho, ou a introdução?


Recentemente, tudo indica que tenha comentado com seu companheiro. Sujeito este que não é nem o mais belo, nem o mais feio, nem tampouco especial de prima vista, mas certamente é dono de uma sorte surreal (ah, mas duvido muito que o saiba!). Não obstante seja dever admitir que o ciúme que se lhe dirige é ainda muito jovem, e bem menor do que a admiração. A despeito de estar ciente, o jovem bem afortunado conta com a discrição; não procurou satisfações, nem atribuiu olhares provocantes, nem nada de diferente. Talvez seja essa sua grande qualidade.
Já sua fonte vital, retribuindo os olhares frequentes, seja por incomodação, seja por qualquer outro motivo, deixa transparecer certa inquietação. Com muita frequência, sentamos em lados opostos das salas. Vejo-a segundas, terças e quintas. Quartas também, mas do lado de fora, e sempre acompanhada. De él, por supuesto. O que me finca como agulhinhas de anzol enferrujado, mas faz-se tão efêmero quanto uma lágrima de criança. Torna-me uma isca em combustão.
Energia? Atração? O fato é que não se trata de uma passion compulsiva nem nada do gênero. Compreende apenas uma certeza: a de que foi encontrada a parceira ideal para o lento leito do envelhecimento, ainda que jamais se concretize tal acontecimento.
Hoje as coisas foram diferentes. Antes da aula, pus-me a sentar atrás de onde julguei que ela sentaria. No entanto, temendo uma má-interpretação (nada errônea), mudei-me para a coluna da direita, mas para trás, na penúltima fileira, de onde ainda a veria discretamente, uma vez que sempre ancorava-se ao meio da coluna esquerda.
Porém, algum motivo - ou bom ou ruim - a fez optar, ao chegar, por sentar exatamente atrás de mim, na última fileira.

Nem sempre a estratégia lobal vence a astúcia leporina. Fato.





                                                (Se porventura não entendestes nada, pago-me do trabalho impessoal.)

[Dedico o título e a abordagem do tema ao meu amigo gaudério-biólogo de vários metros de altura, Sr. Marcelo.]