domingo, 5 de dezembro de 2010

Uísque na Jarra

Estava subindo a famigerada montanha Carmen, de notáveis curvas e sangrentas histórias, e deparei-me com o Coronel Ferrão, contando seu dinheiro. Primeiro, mostrei-lhe minha pistola, e depois meu punhal, dizendo-lhe "levanta os braços e entrega!", pois era ele um sábio trapaceiro, "ou o demônio há de te receber!".
Contei todo o seu dinheiro - e era uma bela quantia -, botei no bolso e levei até a casa de Joana. Ela dizia - chegara mesmo a suspirar em meu ouvido - que me amava, que jamais me enganaria; mas o demônio levou todas as mulheres: nenhuma delas é fácil.
E eu cantarolava sob a chuva interminável: "para meu velho pai se orgulhar, uísque na jarra vou levar".

Até que cheguei ao meu canto, tudo para tirar uma sesta. Sonhei com jóias e com ouro, mas na realidade maravilha alguma ocorrera. Ela pegara meus cartuchos e encheu d'água sem que eu visse. Deu a munição verdadeira ao Coronel Ferrão, que estava pronto para o massacre.
Era cedo da manhã, pouco antes de eu me levantar e seguir viagem. Apareceram um bando de mal-encarados, incluindo o Coronel Ferrão. Eu primeiro mostrei minha pistola, porque ela roubara meu punhal. Meu tiro foi de água, e então fui levado prisioneiro.
Ainda cantaronando sob a chuva forte: "para o meu velho pai se orgulhar, uísque na jarra vou levar!"

Sei que muitos têm prazer tocando as carroagens; outros, aliás, preferem jogar - arremesso ou bolixe. Eu já tenho prazer bebendo suco de cevada, e cortejando donzelas salientes assim que o sol aparece.
Se alguém neste mundo pode me ajudar, é o meu velho irmão, que está no exército. Se eu pudesse achar seu quartel, no Cocão ou na Quirmina... e se ele for comigo, nós vamos atravessar toda a Quirmina...
E eu tenho certeza que ele há de me tratar melhor que a minha infiel, Joana.

E, juntos, cantaremos na chuva afinal: "para meu velho pai se orgulhar, uísque na jarra vou levar".

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Uma Comédia de Erros

Após ter abandonado o recinto por quase um mês, aqui faço-me presente diante de fatos bombásticos a serem versados. Mentira: se eu fosse tu, nem prosseguiria.

Caso seguiste a leitura, orgulhar-me-ia contar-te sobre algumas sucessões de Leontopithecus rosalia pelos quais tenho passado (vulgo 'mico').
Uma forte demonstração disso ocorrera quando, em uma sala de espera, há algumas semanas, sentava com as pernas formando um quatro naquelas poltronas azuis e confortáveis, embora estivesse um tanto eufórico com algumas infortúnias que me diziam respeito. Ocorreu que, antes disso, estava eu no segundo andar, em frente à porta dentro da qual acontecia uma aula importantíssima e irrecuperável. Não obstante, chegara quarenta minutos atrasado. "E agora? Entro? Não entro? Entro pela metade? Espero ser convidado?" Nada disso iria acontecer se eu seguisse imóvel e indeciso diante da porta. Pensei em todas as possibilidades: se eu pedisse autorização na secretaria, deixaríam-me entrar na tal aula facilmente; contudo, com que cara deveria chegar lá e pedir uma autorização para uma aula que já estaria correndo há quase uma hora? Concluí que o melhor a fazer era arriscar: tomei, pois, coragem, e entrei.


Cerca de oitenta cabeças se viraram para mim - dentre elas, a da professora. A monitora, orientada a não permitir ninguém de outra turma entrar sem autorização, olhou-me sem compreender. A alguns segundos, do outro lado da porta, a idealização da cena era totalmente oposta: haveria umas dez ou quinze pessoas, que sequer notariam a minha presença, e eu passaria direto pela monitora, que não teria como me bloquear sem fazer um estrago à aula, o que não deveria ocorrer. Porém, se tudo sempre saísse como é planejado, usaríamos hoje um híbrido bigodinho vertical, e nossos ombros teriam cãibras bárbaras e frequentes.
- Tu quer assistir à aula?
- Uhum eu avisei embaixo lá também já vou sentar depois ali explico melhor...
- Quê? - e eu fiquei tentado a fazer um som de flatos com a língua e os lábios, já que a enrolação não havia funcionado mesmo. As cem cabeças ainda me encaravam curiosas e ríspidas, como quem condena um criminoso pelo roubo de uma velhinha. Seria uma ótima hora para um discurso moralista, pensei.
- Eu posso assistir?
- Só com autorização...
- Mas é a última aula... - disse eu, com o lábio inferior levemente sobreposto.
- Desculpa... são ordens... - e as cabeças errantes mencionaram mesmo um aplauso orgulhoso diante de meu fracasso, conquanto lhes contivesse o superego.

Saí menos envergonhado que conformado, descendo as escadas com certo vigor. Foi quando cheguei à tal sala de espera, com a qual abri este relato.
O amigo aí deve entender algo do comportamento autoempírico que muitas vezes nos leva a ressaltar nossas próprias qualidades num momento de falência egoísta. Por algum motivo, diante daquela situação embaraçosa, um ímpeto instintivo-testosterônico emanara de meu peito coberto de pêlos e, consoante tal balanceamento de cabeças, fez-me agir como um galanteador latino dos anos 50. Enrolei até agora para disfarçar a tamanha besteira que confesso ter feito, assim que chegara na sala uma moça, nem muito bonita nem muito feia, porém com um perfume forte e reconhecível; já o tinha sentido dantes, e até seu nome me era familiar. Não pude deixar de usar a dica do Barradas - mestre em sedução masculina - quanto à "dramaturgia do primeiro contato"; a teoria é baseada no fundamento que, segundo o jovem branco, garante um resultado positivo no caso de utilizarmos nossa primeira fala de forma augusta, ostentada e destacada, como nos filmes... e não foi menos o que procurei fazer, assim que ela sentou ao meu lado.
- Ralph? - perguntei, tendo certeza que este era o perfume que lhe cercava o corpo.
- Não, Mariana.
No início pensei tratar-se de um mal-entendido e calei-me. Alguns minutos depois, percebi a maldade.

Fato semelhante ocorreu-me hoje, enquanto andava nas ruas da Independência. Não foi difícil notar  um sujeito com uma camisa de tecido tipicamente europeu, uma calça cinza angla, um chapéu ocidentalizado meio germânico (anos 50), óculos escuros norte-americanos, pele totalmente branca, rosto europeizado, sapatos britânicos e uma pasta escrita "www.goethe.de". Parecia levemente perdido. E confesso ter desviado meu caminho propositalmente para entrar na sua rota. A idéia era avisar-lhe, amigavelmente, para que procurasse vestir-se como um brasileiro, uma vez que anda livremente pelas nossas ruas, antes que lhe assaltassem, tratando-se de uma região famigerada. Todavia, seria audacioso demais pará-lo no meio da rua. O sujeito notou que estava sendo seguido e precisei dissimular um pouco, até que ele travessou a rua, e eu também - nesta hora já havia desviado totalmente do meu caminho - tendo ambos parado num local de espera de ônibus. Aproximei-me e tomei alguma coragem. Pensei: em que idioma devo abordá-lo? Apesar de meus conhecimentos germânicos serem um tanto meristêmicos, saberia cumprimentá-lo de maneira segura. No entanto, e se o sujeito fosse inglês? Seria um desastre. O certo mesmo era falar com ele em inglês, idioma largamente entendido pelos alemães inclusive. No entanto, havia o risco de o cara ser francês, e ofender-se caso lhe dirigisse um "hello my dear" logo de cara... Um pouco indeciso, optei pela opção mais humilde, porém a mais coerente:
- O senhor é daqui?
- Sim, de Porto Alegre.

O problema mesmo foi explicar-lhe que só queria ajudar. Esses imigrantes...

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Incidente no Shopping

Fui chegando ao primeiro posto Mc Donald's de dentro do shopping, aqueles que só vendem sorvete. Aguardei vários minutos na fila, ocasião que só ocorre quando a abstinência glicídica torna-se uma patologia.

Quando chegou minha vez, a surpresa:
- Não temos sorvete de chocolate, moço.
- Oi? Como assim?
- Só lá em cima, no outro quiosque.
- Hunf. Tá.

Contrariado, porém complacente, esperei na fila do elevador. Quando o primeiro chegou, depois de uns cinco minutos, todos da fila à minha frente entraram, menos... eu. Atrás de mim, notei uma senhora com um vestido de bolinhas radicais que reclamava muito do elevador que não chegava. Isso acabou por me contagiar, e comecei a ficar angustiado, o que me fez optar pela longínqua escada.

Caminhando pelo longo labirinto do Shopping Total, deparei-me com uma loja de camisas pólo, o que me chamou atenção - não pelas camisas, mas pela tela que passava ao vivo uma partida de Pólo (aquele hockey sobre cavalinhos). Não me era estranha aquela cena; lembro-me de ter feito isso várias vezes durante o ano, e curiosamente sempre pegava o jogo de pólo passando ao vivo. Não obstante, meus sonhos infantis foram destruídos quando, da vitrine, pude ver o dono da loja sacando o controle remoto e apertando o botão de pause, desligando um aparelho e retirando um maldito DVD. Então era esse o jogo "ao vivo" que eu sempre assisti com orgulho; uma verdadeira farsa, uma traição!

Saí desamparado daquele lugar e me dirigi à escada com pressa, apesar de o episódio anterior não ter me tomado mais do que um minuto. Ao alcançar as escadas, subi-as com certo vigor; não adiantaria nada chegar depois do elevador - iria ferir meu orgulho.

Assim que cheguei ao segundo andar, corri ao elevador para checar: a porta estava fechada. Sorri de prazer ao notar que fiz a escolha certa. Virei-me em direção ao segundo posto do Mc Donald's atrás do meu necessário sorvete de chocolate. Quando lá cheguei, tive uma desagradável sensação ao notar a senhora do vestido engraçado pegando um sorvete. Ela não só chegou antes de mim, como lhe seguiam três pessoas na fila. Fiz uma automassagem atrás da orelha para afastar a indignação e entrei na fila. Demorou muito para eu ser atendido:

- Chocolate nós não temos, senhor... só na praça de alimentação.
- Quê? A moça lá embaixo disse que vocês tinham!
- Pois é, mas desde ontem está em falta, e ela sabe disso...
- Grande. Vocês formam uma ótima equipe, parabéns - disse, indignado, seguindo em direção à parte mais distante do shopping: a praça de alimentação.

Nesta hora, eu quase desisti, confesso; mas a vontade de sentir o sabor do chocolate gélido e industrializado, cercado de trigo seco com açúcar, ah... essa vontade me fez seguir em frente, e fui.

No meio do caminho, porém, resolvi adentrar no famoso banheiro família. O segredo deste ambiente sagrado é que foi criado para uso coletivo, porém o grupo deve envolver crianças e responsáveis. Isso o torna mais limpo e mais relaxante, o que sempre me faz optar por lá. Chego perto da porta, olho para os lados - o banheiro masculino é logo ao lado - e , sem ver funcionários ou usuários dos outros banheiros, me enfiei lá dentro.

Ao trancar a porta, me deslumbrei com o brilho do local, que é tão grande quanto meu próprio banheiro. O espelho era enorme, havia duas pias e duas patentes - uma era infantil. Urinei com cuidado para manter a homeostase do ambiente e apertei a descarga após. Lavei as mãos em ambas as pias, usei tanto o papel quanto o secador e me obsevei por muito tempo no espelho. Quando estive seguro de que não precisaria mais usufruir de nada lá de dentro, resolvi abrir a porta. A surpresa foi que, pela primeira vez, o segurança estava exatamente na frente de tal banheiro, que é estrategicamente escondido. Era evidente que me chamaria a atenção. O inesperado - para ele - é que eu estava muito engraçadinho.
- O senhor sabe ler? - disse em tom grave, referindo-se à placa com os dizeres "Banheiro Família".
- Sei sim, o que é que o senhor não conseguiu ler?
- Quê?
- Pode dizer, que eu leio pro senhor.
- Não é isso, rapá! Tu não viu que esse banheiro é só pra família?
Inspirei, fazendo cara de compreensível.
- Pois é, eu sei sim.
- Então por que tu tava ali dentro?
- Porque eu moro sozinho!

O cara ficou alguns segundos sem resposta, tempo que usei para dar o fora dali. Provavelmente ele ficara pensando sobre isso por um bom tempo até perceber que foi feito de bobo.
Segui para a praça de alimentação com certa agonia; parecia que tudo estava conspirando para que eu não adquirisse o sorvete, o que me deu ainda mais ânimo para comprá-lo - questão de honra.

E fui. Chegando na praça, desviei dos maníacos que tentavam me obrigar a comprar em seus restaurantes, inclusive me segurando pelo braço. O Mc Danado's é a última loja, aos fundos do local. Lá, entrei em uma fila quilométrica para, horas mais tarde, descobrir que era a errada.
- A fila do sorvete é aquela ali, senhor.
Nem discuti. Só entrei na outra fila, respirando sangue.

Chegou a minha vez, ou quase; uma senhora passou na minha frente, e antes que eu pudesse dizer nada, ela foi atendida. O pedido dela era três casquinhas, ou mistas ou de creme, um McFlurry de Suflair ou Ovo Maltine e um copo d'água. Duas crianças e um velho batatudo surgiram atrás dela do nada. Conforme iam decidindo os sabores de fato, o velho ia alcançando às crianças, até ficar com um para si. Este processo de tortura me levou mais uns seis minutos, pelo menos mentais.

- E para o senhor?
Respirei fundo.
- Uma casquinha de chocolate.
O tempo parou por alguns segundos. Era como se eu visse tudo ao meu redor, e tudo me visse também, em movimentos circulares e em câmera lenta, de cima, de baixo, pelos lados... até um balde de água fria irromper-se sobre meu rosto.
- Não temos, só no quiosque um, lá embaixo, senhor.
Tremi.
- Peraí. Eu fui lá, eles me mandaram pro segundo, que também não tinha e acabou me mandando pra cá. Vocês tão me fazendo de palhaço?
Eu pude ouvir um "sim" escapando pelos seus olhos gosmentos, mas não teve coragem.
- Não senhor, desculpa... mas não tem mesmo, só lá embaixo...
- EU JÁ FUI LÁ EMBAIXO $#@&*!!!
- Calma senhor, não tem o que fazer, aqui não tem mesmo...
- EU TE VI FAZENDO UMA MISTA AGORA MESMO!
- Mista tem, senhor...

Eu quase infartei. Não entendo como funciona a tecnologia do Mc Diabonald's, e nem quis saber; só virei as costas e fui correndo para o quisque debaixo.
Ao chegar, vi um guri saindo com uma casquinha de chocolate nas mãos. Gelei de raiva. Sequer esperei a pequena fila que se formava.
- Olha aqui, o que tu pensa que tá fazendo?! Não disse que não tinha chocolate? Me fez subir e perder tempo duas vezes e agora tá servindo o que eu pedi pros outros?
Acho que me exaltei.
- Ah, desculpa senhor, eu me enganei... na verdade é no segundo quiosque que não tem chocolate...
- É, EU SEI!
- Eu vou fazer uma pra ti, peraí.
E, por algum motivo, as crianças da fila não se meteram na decisão.

Ela serviu uma casquinha cremosa de chocolate e me deu. Paguei e não proferi uma palavra sequer.

Na primeira lambida, a constatação:
O gosto estava tão neutro quanto um picolé de água benta.

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Você Come o que Você É

Minha alimentação tem sido algo totalmente irregular nas últimas semanas, devido a quaisquer desafetos internos. Isso me vem levando a fome por completo durante o dia, devolvendo-ma pela madrugada, caso não durma antes.
Nas ocasiões em que não tive tal sorte, acabei por aprender a cozinhar; sim! Aprendi a fazer coisas sozinho, e dei nomes a elas, como A Galinha Shoyada e O Bife-Bafo Viamonense, sempre fazendo alusões aos ingredientes ou aos efeitos causados por estes. É claro que toda essa criatividade não poderia ter-se passado em outra hora senão entre a meia-noite e as duas da madrugada, o que me levou a nomear também a nova prática culinária, apelidada de Culinoite.

E qual não foi a surpresa quando, agora há pouco, a fome bateu. Não pensei duas vezes: abri a geladeira e busquei por nutrientes. Achei batatas pré-prontas e levei muito tempo pra prepará-las mesmo assim. Chamei-as de Bata Ta Demorando. Além disso, ouvi, ao anoitecer, alguém elogiando o feijão; pensei que seria uma boa hora para reutilizá-lo. Foi então que verifiquei a segunda prateleira, e lá estavam: um pote pequeno e insignificante de plástico, contendo uma quantidade ínfima de feijão, e, ao lado dele, um pote de vidro avantajado, onde geralmente se costuma guardar o feijão de fato. É óbvio que escolhi este último.

Ao levá-lo, no entanto, até o micro-ondas, notei algo de diferente através do vidro escuro. Abrindo-o, verifiquei que havia um bife pronto em cima do feijão. Além disso, notei alguns pedaços de presunto espalhados desuniformemente. Foi quando me lembrei daquela vozinha pré-adolescente vinda, mais cedo, do quarto ao lado: "o feijão hoje ficou muito bom!". Olhei para o pote e sorri; "é claro! Eis o segredinho que o deixou gostoso!"

Aqueci-o e voltei a atenção novamente às batatas. Depois de muito tempo, utilizei o mesmo óleo para preparar o Bife-Bafo Viamonense, com bastante alho. Tudo pronto, enchi o meu prato de feijão.

Como é bom comer sozinho e de madrugada; todo homem tem um caminhoneiro dentro de si - basta estar só e inspirado. Quando o feijão sobrepôs-se ao arroz, pus-me a separar os pedaços de bife e de presunto que encontrava, como quem separa a folhinha de louro ou o bacon cozido - afinal, pensei, "são só temperos, ainda que alternativos."

Comi tudo, e concordei com a minha irmã; o feijão estava com um sabor forte e único, mesmo requentado. Os pedaços de coisa dentro dele somente deram um "gostinho a mais". Ora, alguém precisava sugerir à Cleci que repetisse a receita no dia seguinte, em vez de dar tudo para os cachorros, como de cost...

Sim; foi neste exato momento que notei estar comendo a comida dos cachorros de amanhã. Isso significa que, no mínimo, aquele feijão não era o novo, e sim o de anteontem, e a ele estavam agregados todos os restos da casa, inclusive os da empregada. Provavelmente o feijão elogiado esteja no pote pequeno, feliz e intacto. Fiquei perguntando-me de quem era aquele bife enormemente mastigado, com certa repulsa, confesso; até que uma idéia totalmente ilustre surgiu à minha cabeça.

Que não há diferença entre mim e o cachorro. Se ele come a minha comida, por que não posso comer a dele? Os mesmos nutrientes, as mesmas consistências e o principal: o mesmo sabor.
Diante do exposto, coloquei-me no mastro do navio, e mais uma vez o instinto humano falou mais forte:

"Quem saiu perdendo foi o cão, e não eu!"


Apelidei o prato de Feicão. E por muito pouco, não repeti.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

O Que Realmente Ocorreu

...na manhã de 21 de outubro de 2010 - semana passada, mesmo.
Conversando com os amigos do mestre Alberto Pastelina ontem à noite, um deles me contou com detalhes o que ocorrera na Suécia com o jovem brasileiro acusado de múltiplos assassinatos aleatórios.
O tal é filho de um amigo desses senhores, o que tornou o assunto um verdadeiro tabu. Foram cautelosos tanto na hora de contar-me, quanto na hora de servir o whiskey. Ora, quanta frescura. (Espero que eles não leiam isso).
O fato é que, segundo eles, o rapaz teria feito contato telefônico com o seu pai antes de ser localizado em uma das maiores metrópoles suecas, no meio daquele dia. Explicou tudo que tinha acontecido e pediu perdão por ser diferente. Segue a seguir, dando seguimento à sequência do texto, o que vos apresentarei abaixo. Caso sejas sensível, moralista ou composto de cera, não leias.

Conforme relatou o pai do maníaco aos amigos, o jovem tinha tendências suicidas antes mesmo de sair do Brasil. Após algumas terapias fracassadas, decidiu-se que o melhor seria viajar. Primeiramente, passou dois meses na França, mais três na Alemanha e, só então, mudou-se para a Suécia, mais especificamente para Gotemburgo. Lá, fixou-se na casa de um estudante dinamarquês, tendo ambos estudado em Chalmers.
Semanalmente, comunicava-se com o pai através de e-mails e, raramente, de alguns telefonemas. Nestes últimos e-mails, que circulam ilegalmente pela rede, pôde-se notar que seu grau de depressão estava acentuado. Dizia que a Suécia era gélida em inúmeros sentidos, tendo-a comparado diversas vezes o inverno com o "inferno". Não se sociabilizava muito, segundo o penúltimo email, e basicamente tinha por amigo o colega de quarto (o da foto, tirada no início do ano pelo próprio colega brasileiro nas redondezas do lago Delsjon). O sujeito era adepto do black metal, corrente de rock pesado com tendências obscuras e por vezes agressivas.

Após ter influenciado o brasileiro, que já sofria de distúrbios emocionais, ambos planejaram um homicídio mútuo, ritual no qual um mataria o outro ao mesmo tempo. Deixaram a idéia em pauta por meses.
Até que, há algumas semanas, foi retomada a idéia e marcada uma data. O último e-mail mandado pelo jovem ao pai teria os seguintes dizeres: "sei que você não se orgulha de mim hoje, mas talvez se orgulhe amanhã", o que não fora compreendido pelo progenitor.
Na noite de quarta-feira, dia 20, o jovem dinamarquês adquiriu duas armas idênticas, modelo Carl Gustav m3, as quais seriam usadas no ritual. Aguardaram o pôr-do-sol daquele mesmo dia e, conforme combinado, subiram até o sótão e sentaram frente-a-frente no chão, com as armas apontadas um para o outro. O plano era contarem até cinco e atirarem ao mesmo tempo, um contra a cabeça do outro. Porém, não foi o que aconteceu.
Receoso, o brasileiro contou ter disparado assim que o número um foi contado. Após matar o amigo, tendo permanecido vivo, passou horas por volta do corpo sem saber o que fazer. Após, assistiu um programa na televisão, pelo canal sueco TV4. Apesar de não ter referido qual programa era, sabe-se que envolvia conceitos bélicos e "injustos", conforme declarou o rapaz por telefonema. Como às 23h não havia ainda decidido o que fazer, resolveu sair às ruas com a roupa do corpo - e com a arma. Aguardou em frente à igreja Tyska Kyrkan, fundada por alemães, até que o sol nascesse. Feito isso, atravessou a praça Gustav Adolfs Torg (o centro político e administrativo da cidade) e chegou a uma escola secundária, Arbetarrörelsens Folkhögskola, tendo invadido o local às 10h da manhã de quinta-feira, dia 21, horário local.

Diz-se que, logo ao entrar, atirou sem piedade em cinco crianças que corriam em sua frente. Uma delas, tendo permanecido viva, procurou socorro na sala da coordenação geral, aonde chegou o jovem brasileiro logo após, terminando o serviço com a criança e com três funcionários do local. O caos correu solto a partir de então, e todos que puderam correram para fora da escola. Infelizmente, não tiveram a mesma sorte uma turma isolada que assistia a uma aula especial no fundo de um corredor do quarto andar. Chegando no local, que só possui uma porta, o brasileiro agiu com requintes de crueldade ao mandar um jovem estudante escolher qual entre três colegas deveria morrer. Não sendo capaz de escolher, o rapaz matou os três, e mandou o mesmo jovem escolher entre mais três. Mais uma vez não fora capaz de escolher, e a chacina se repetiu. Na terceira vez, o jovem escolheu uma menina do trio proposto pelo maníaco, que matou os outros dois, tento poupado a vida da menina. Após esse fato, dois alunos se atiraram da janela, tendo morrido pelo impacto com o chão. Os doze jovens restantes e a mestre foram torturados emocionalmente por mais de trinta minutos, quando a polícia conseguiu contato com o criminoso. Convencido de que iria para a cadeia, o jovem chegou a atirar contra um policial, que se feriu gravemente no rosto. Ainda chegou a atirar contra dois alunos e contra a professora, que estão internados em estado grave no hospital Östra sjukhuset. Com a última bala, suicidou-se em frente os jovens restantes.

Fatos como este são muito comuns nos países desenvolvidos e cada vez mais frequentes em metrópoles europeias e americanas. No entanto, registrou-se pela primeira vez uma chacina psicopática cometida por um brasileiro no continente.

Sinal de que estamos evoluindo.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

The Stalker (#3)

Disse um chinês num passado longínquo: "Lamentar o que não temos é desperdiçar o que possuímos".

Alertou também, o chinês, que se não leste as partes um e dois e por algum motivo desejas seguir, é recomendável que as busques nas postagens abaixo.


Parte 14: Para que um grande desejo se realize, é preciso ter um grande desejo

Hiperbólico? Reafirmo.
Não obstante, trata-se de um fato, e não de um argumento. Tanto ocorreu desde o último relato, que sequer recordo a ordem de los hechos; hei de organizá-los, pois, à minha maneira.


Parte 15: Nadie es imposible 

Nosso hermano Jorge Luís Borges já assim dizia: que ninguém é impossível. Até mesmo aqueles cuja árvore milagrosa é plantada no cume de uma montanha flutuante poderão, um dia, alcançar seus frutos. É o que me motivou nesses últimos dias. Há duas ou três semanas, creio, tivemos um singelo diálogo de três minutos - três séculos em meus olhos - no qual a avisei de uma futura aula extra. O sorriso recebido em troca desarmaria a Invencível Armada espanhola. Meu Deus, se eu lhe cresse, a ti abençoaria por tão bela arte ter-me criado. Digo "a mim", porque nadie es imposible, e já estou convencido de que o êxito é fruto do desejo, e basta.
Na ocasião, olhei em seus olhos - bicolores - mas não tive coragem de confirmar o fenômeno de perto. Quando os olhares se cruzam, sente-se a chama flamejante do "mistério inexplicável", o qual me nego a proferir para não corar. Em um paralelo racional, meu sistema simpático ativou-se diante de sua simpatia. Ah! Aguardei ansioso por um agradecimento especial por orkut. O que naturalmente não aconteceu.


Parte 16: Podemos nos defender de um ataque, mas somos indefesos a uma gentileza

Adaptada de um mestre psicopata, a frase remete-me ao dia em que estávamos na aula de história, cujo professor concentra uma entropia acima do comum. Por conseguinte, abusa das baixas temperaturas do ar condicionado. Conscientemente ou não, sentou-se à minha frente; vi-a tremer - quão bonito é o frio em sua pele! - e segurei-me para não oferecer o casaco. Voltando para casa, tomei um Nescau a mais para criar coragem: mandei-a um depoimento. Disse que lhe notei o frio - em eufêmicas palavras, por óbvio. Respondeu-me logo tão simpaticamente que desta vez fui o que tremeu. Repliquei: lhe ofereceria meu casaco, mas não saberia sua reação.
A despeito de não obter resposta desta vez, ambos os depoimentos foram mantidos intactos em seu perfil por 96 horas.


Parte 17: A primeira grande desilusão, tão dolorosa quanto resquícios flamejantes de um projétil metálico deformado


E após tal investida - que considerei a primeira relevante - senti a doce ilusão da esperança crescente, de forma semelhante à minguante pálida de nossas madrugadas, que, apesar de encher-se por completo, não tarda a regredir novamente. Não a vi por um bom tempo, o que não é novidade. Quando, porém, tive tal sorte, vi-a acompanhada. "Ora", perguntarás, "como não soubera de tal condição! Que lhe passou?"
É que foi a primeira vez, caro amigo, que a vi retribuindo, ainda que de leve, alguns gestos de afeto.


Parte 18: O inevitável sopro noturno de inspiração, gerador de obras inúteis e inexpressivas


Daí, procurei certa vez descansar. No entanto, algo me excitou deveras: uma melodia surgia em minha mente, sob a imagem de sua face. Era óbvio para mim que o sopro noturno de inspiração me viera visitar. Sentei à cama, puxei o piano elétrico pelas bordas and I played it by heart. Não fui eu quem a criara; pelo contrário. Basicamente renasço quando as pontas de meus gélidos dedos expressam, sem uma palavra, aquilo que meus lábios mórbidos e atravancados não conseguem proferir. Mais três pessoas ouviram a melodia quase completa, cujo nome não lhes será nenhuma surpresa. Algum palpite?
Ah! Desconsidera a conjunção vulgar que utilizei para abrir este capítulo.




Parte 19: Momentos especiais de uma história especial


Mas apesar das desilusões, houve também momentos especiais, nos quais pude me certificar de que o jogo de fato está em andamento. Não, jogo não; o "concerto" soa melhor.
Lembra-me a aula de literatura, há umas duas semanas, à qual foi acompanhada do afortunado rival. Não é comum tal conjunção; no entanto, creio que é a arma que este tem contra a incerteza da investida cega de um outro semelhante. Que não me vai atacar, é fato: poria tudo a perder, qualquer que fosse o resultado, além de estar reafirmando o perigo que, até então, é tão sutil quanto fora a Guerra Fria aos olhares soviéticos. Mas voltando ao assunto axial, nesta aula literária sentei-me no canto esquerdo da enorme sala, protegido por uma muralha feminina ao redor - em especial uma peculiar jovenzinha do interior gaúcho que me persegue declaradamente. Ela e o sujeito chegaram bem atrasados, sentando no canto inverso da sala, também rodeado de pessoas. Havia um ínfimo ângulo ligando nossos olhos através de uma distância razoável. Ademais, para que nos víssemos seria preciso desviar o olhar da aula em si em um ângulo de, no mínimo, 80º. Não se satisfazendo, ainda teríamos ambos de cuidar o asqueroso olhar rival, um para evitar conflito, e a outra para evitar... conflito também. Confesso ter sido uma surpresa agradável quando, em um determinado momento da aula, nossos campos visuais se cruzaram em uma linha paralela, diretamente, e o que de mais improvável havia de acontecer, de fato ocorreu. Gelei; mas satisfiz-me.
Em outras ocasiões, notei que procurava sentar sempre ao meu redor. Volto a dizer - não duvido da inconsciência, porém há uma chance, e quaisquer possibilidades de cura abrem um horizonte infinito a um enfermo.




Parte 20: a tática indiscreta do duelo de belezas e, por que não, de vaidades


Não fora de todo proposital, mas confesso que rendeu bons frutos. Minha belíssima amiga T. acompanhou-me em uma tarde de quarta-feira, entre as aulas. Sentamos em um dos bancos da varanda do curso. Não me era surpresa que a veríamos em breve, e de fato passou por nós. Senti diretamente seu olhar de incoerência. Não digo que lhe despertou qualquer sentimento eufórico; no entanto, a incerteza de seu olhar a fez sentar num banco muito próximo, de frente a nós, junto de uma amiga. Não fora uma só vez que trocamos os mesmos raios visuais; aliás, cheguei a contar alguns segundos em uma destas ocasiões.


Parte 21: não desejo falar de hoje

Porque não ainda me certifico do que de fato sucedeu. Ando visivelmente tocado pela situação, e é de tamanha intensidade, que até mesmo quem não suspeitava, agora é dono de maquinações maléficas. Não lhes tiro a razão: está escrito em meus olhos. Eis o grande defeito do vaso transparente: pode-se enxergar através dele. Dirás: "ora, mas que grande redundância!", do que, aliás, discordarei com muito rigor.

Tem sido difícil lidar com isso como quem lida com um cadáver sob o formol. Observá-los, analisá-la, evitar o contato apesar do imenso desejo... ontem mesmo, nas primeiras horas da madrugada, voltávamos eu e Jonas da noite porto-alegrense, quando me deparei com uma mudança drástica em seu perfil. Seu e-mail, que antes nos era oculto, fora revelado; um texto indecifrável fora adicionado; a frase de liberdade foi reconstituída.
Consultei o Jonas, que, a essas alturas, divertia-se jogando WII sozinho, às 6h da manhã, na minha sala de estar (jamais questione costumes germânicos). Ele me mandou adicioná-la. Eu refleti por tantos minutos que sequer lembro de quando tomei a corajosa decisão. O fato é que a tenho, pois, teoricamente, nos meus contatos de MSN. O problema é como agir quando tal diálogo for inevitável. Diante desses fatos, encerro o terceiro volume com as sábias palavras de meu amigo Marcos, que descobriu-se talentoso em comparações insólitas:
"Marcos diz: quest difícil essa, cara..."

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Matei Meu Amigo Marcelo

Se estás com pressa, posso bem resumir minha confissão a uma só frase: matei meu amigo Marcelo, cravando uma lança de metal nas suas costas e pendurando-o após na janela, alinhado com o sol.

Agora, se quiseres ouvir minha versão, senta-te aí.

Eram cinco da tarde, ou perto disso, numa casa que, sinceramente, não conheço muito bem. Estávamos no segundo andar, dentro de um quarto muito grande; éramos os únicos na residência. Próximos à janela, demos seguimento a um diálogo muito delicado.
O sol estava se ponto e ele me olhou nos olhos, meio encurvado, com uma expressão de súplica. "Eu preciso morrer", dizia. E eu, como amigo, o tentava convencer do contrário. "Tu precisa me matar, cara... é sério"

Eu tentei negar tantas vezes; porém, a cor de sua face foi escurecendo a cada vez que o contrariava. "O mal cresce dentro de mim, tu não vê? Não vamos deixar ele tomar conta. Me mata, cara!"

Sob um árido sentimento de culpa, cravei-lhe uma faca ao peito.

Marcelo ajoelhou-se - lembro bem! - e permaneceu encurvado por vários segundos. Quando o arrependimento começou a diluir-se nos meu sangue, através dos meus olhos,
o louro rapaz levantou o dorso, encarou-me com um olhar penetrante e avermelhado, dizendo as seguintes palavras: "não foi suficiente"

Apontou para uma lança brilhante de metal, muito afiada e com o comprimento de dois metros. Arranquei-a da parede; Marcelo virou-se, e então cravei a lança prateada em suas costas, atravessando-o e saindo por seu peito. Senti a dor que lhe atingia, mas já era tarde: precisava concluir a tarefa. Pela lança, levantei-o e pendurei seu corpo agonizante na janela, ajustando o ângulo com o sol poente. Deixei-o ali, pendurado, para que o mal queimasse para sempre.

O Jonas entrou no quarto. "Já fez?", e eu respondi "sim". Era hora de se livrar das provas. Foi exatamente neste momento que algo nos passou pela cabeça: será que alguém iria entender o nobre motivo do crime?

Meu cúmplice e eu descemos as escadas com muita pressa; era preciso limpar tudo que nos incriminasse. Começamos por uma garrafa de coca-cola na cozinha. Depois, Jonas começou a abrir as portas de todos os cômodos para verificar se havia algo, e eu bradei "Não, cara, te liga! Tuas impressões vão ficar na fechadura!" Ele respondeu algo meio contrariado, mas limpou as fechaduras com sua roupa.
"Perguntei para ele: e agora? Por onde fugimos?", tendo obtido de meu companheiro a singela resposta: "Pelo Ártico". Um sorrisinho no canto de sua boca sugeria uma sábia ideia. Não compreendi, mas segui-o escada acima; subimos para o terraço, onde um pátio descoberto nos aguardava. O muro desta gigantesca área dava para um terreno muito longínquo, recheado de árvores, onde ninguém nos veria. Entendi (em partes) o tal "Ártico" de meu cúmplice Jonas: mas não sei explicar...
Antes, lembramos que havia algo lá embaixo do que precisávamos nos livrar. Corremos escadas abaixo, por três andares, até darmos de cara com a janela, que nos mostrava o portão da frente a uns 20m dali. "Se alguém chega agora estamos ferrados", disse eu. Nossa barriga gelou quando um carro preto parou na frente do portão, abrindo-o. Eram meus pais.

- E agora, cara? E agora? - disse eu, agachado, correndo para um dos quartos do primeiro andar. Jonas foi atrás.
- Não sei! Agora não sei!
Meus pais desceram no pátio, após estacionarem, e entraram na casa. Levariam algum tempo até verem a janela do quarto do andar de cima, e este era o tempo que tínhamos de liberdade. Minha mãe andou pelo corredor e nos encontrou no quarto do térreo, próximo à cozinha, onde discutíamos nosso fracasso. "Oi guris!" disse ela, alegre. Cumprimentamos. Quando ela se afastou, desabafei:
- Na hora que eles descobrirem vai ser f***.
- É... não tem o que fazer...
- Eles nunca vão entender o motivo...
- Nunca...
- O pior é imaginar o que os pais dele vão sentir também...
Ao falar isso, senti um calafrio. Era medo. Respirei, olhei para a janela do quarto, aberta, e continuei:
- Se o Marcelo tivesse pelo menos deixado uma carta explicando os motivos...
- Não adianta... homicídio é homicídio - respondeu meu sábio cúmplice.

Marcelo Horst (1989-2010)
Neste momento, não sei bem por quê, tentei pular a janela do quarto; enquanto o fazia, ouvi ao fundo um som muito forte de strings e guitarra aguda. Reconheci a música Carry On, tema do meu despertador, que me acordou antes de eu tocar o chão do pátio.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

A Reforma Infernal


Antes de graduar-se em medicina, direito, filosofia, letras e economia, meu velho companheiro Alberto Pastelina chegou a cursar Teologia por cinco semestres. Surpresa foi, contudo, o fato de ter sido expulso após a apresentação de um trabalho, em forma de teatro, cujo roteiro os apresento abaixo – não sem sua autorização prévia. Malgrado tenha lhe ocasionado tal punição, seu sucesso seria evidente em casas noturnas e, por que não, no programa Zorra Total.

Na serenidade do Divino Escritório, abre-se a porta às pressas:
- Senhor, Senhor!
- Mas que... o que é isso, Gabi? Entras assim, sem bater?
- Perdão, mas é urgente! O Pedrinho tá com problemas no Hall, parece uma rebelião!
- Outra? Caramba, está virando moda.
O Divino levanta de sua poltrona e segue, nem lento, nem apressado, até o Hall de entrada. Ao chegar, encontra pessoas debruçando-se no gigantesco portão de ferro pelo lado de fora, escandalizados e, de certa forma, vandalizando o ambiente.
- O que está acontecendo por aqui, Pedrinho?
- Bah, eu não agüento mais. Esses três aí tão pedindo pra descer... um diz que não morreu, o outro que morreu de leve e o último que já morreu várias vezes na vida e nunca veio parar aqui.
- Eles se conhecem?
- Sim, são tudo crente.
- Crente o caramba! Eu sou devoto! DEVOTO! – urrava de trás do portão um dos recém chegados.
O Divino olhou para o rebelde, que se calou.
- Deixe-o entrar.
- Mas senhor...
- Pedro;
- Sim, Divino.
A porta se abre; os três sujeitos ficam imóveis. O Divino ordena que o “devoto” se apresente, e este, receoso, dá um passo para frente.
- Chegue mais perto. Mais um pouco. Mais, mais...
O sujeito, de cabeça baixa, aproxima-se até dois metros do Divino, que se pronuncia.
- Você está morto?
- Não, senhor.
- OK. Pedro, mande-o de volta.
- Como assim, Senhor?
- Mande-o para a Etiópia. Reencarne-o numa prostituta aidética e não o deixe morrer até que o Egito vença uma copa.
- Mas senhor!
- Pedro!
- Sim senhor.
O infeliz, aos berros inconformados, é obrigado a descer a Escadaria da Luz. Os dois restantes jogaram-se no chão de instantâneo, como se simulassem a própria morte. O Divino olhou para Pedro sob seus óculos circulares e retornou ao escritório.
Sentado na sua poltrona novamente, chegou a fechar os olhos por alguns minutos; não obstante, o insistente telefone o alerta.
- Hã, Gabinete Divino, em que posso ajudar?
- Senhor, aqui é Davi, Secretário de Guerras. Estamos com um probleminha no...
- Oriente Médio?
- Isso mesmo, Senhor, mais especificamente em Dubai. Tem uma multidão de vagabundos, todos trajados de vermelho. Estão saqueando a cidade, totalmente descontrolados!
- Ora, isso é peixe pequeno, Davi. Lança um “pára-te quieto” aí que resolve.
- Mas Senhor, o que eu faço?
- Sei lá, taca uma banana, lança uma pedra, te vira!
Desligado o telefone, este volta a tocar.
- Que é, Davi?
- Não Senhor, aqui é do Ministério Interativo. Ligação do Limbo para o Senhor, posso passar? – disse uma voz feminina enjoada.
- Ah, sim, Madalena, por favor. – e a música de espera (Ave Maria) passa a ser tocada ao som das harpas angelicais.
- ALÔ!
- Pois não.
- Ah, fazido! Não reconhece a voz, agora?
- Fala, Lucy.
- É o seguinte, ô “iluminado”. Tô cansado desses sujeitos que você manda pra cá sem avisar. Já bastava Barrabás, Nero, Calígula, Hitler, Enéias...  até a Dercy Gonçalves...
- Ela que quis ir, eu bem que tentei...
- Tá, tá... mas por falar em Hitler, ele quer ter um papo contigo, lá vai. – Antes que o Divino se posicionasse, uma voz levemente aguda e determinada, com sotaque ariano-farofa, pôs-se ao telefone:
- Hallô!
- Fala...
- No entende porque que tem que estar aqui, uma vez. Wenn Mussolini está aí, se fez ele muita mais coiso que eu!
- Mussolini não está aqui, Adolfo, ele foi reencarnado em um porco napolitano há anos. E ele não fez mais que você, não senhor...
- Ora Scheisen! Como ousar! Ser eu não tão má assim como diz aí fora, tava só brincando mas non comprende, uma vez!
- O seu julgamento já foi feito, Adolfo. Sinto muito.
- Ach So Scheisen! Ich como Führer declarar GUERRA ao senhor!
- Ah, Adolfo... não me amola... passa pro teu dono aí.
- Dono? DONO? – e o telefone é arrancado de Hitler, que segue gritando atrás, cada vez mais afastado.
- Demo?
- Sim, peguei do Fritz aqui... é de doer o ouvido esse louco cantando toda manhã... “um barril de chopp, é muito pouco pra nós!”. Olha aqui, branquelo: ou tu trata de aumentar a burocracia aí, ou vou começar a mandar uns “gente boa” aí pra cima também, morou?
- Tá, rapaz, eu vou trabalhar nisso... Cara chato, viu.
O Divino desliga o telefone e já o pega novamente, discando o ramal 667.
- Departamento de Incêndios e Desastres Naturais, em que posso ajudar?
- Oh, me enganei. Qual é o número da DAC?
- 666, Senhor.
- Obrigado – diz, e disca o número.
- Departamento Amigos do Capeta, em que posso ajudar?
- Ô Raulzito, é o Divino aqui de cima.
- ÔÔ meu pai! A que devo a honra?
- Eu quero uma relação dos próximos que vão pro Limbo antes de sexta-feira... parece que o chefe lá anda meio contrariado...
- Ah... vou fazer isso agora mesmo e te envio por um moleque, ok?
- Please malandro.
- Já é, chefia. Me dá dois minuto aí.
De repente, bate à porta o possível moleque. Divino grita “Tá aberta”, e entra um sujeito esfarrapado, totalmente sujo e mal cuidado.
- Pai...
- Quê? Jesus? Ah, filho, já disse pra você trocar essas roupas!
- Ah não, não dá, véio... se pá eu vou morrer nessa beca...
- Hum... manda então.
- O tio Raul mandou entregar pro senhor esses esquema, mó loucão ele, né não?
- Filho, você não precisa ficar fazendo favor pra todo mundo... já te falei que isso tá errado.
- Ah qual é, meu... to pela paz...
- Sei. Tá, me passa logo isso.
Jesus passa um pergaminho com milhares de nomes anotados à tinta.
- Paizão, descola uma prata aí pro teu filhote...
- Quê? Qual é, Jesus? Já tá crescidinho pra ficar me explorando...
- Pôôô, me vaiou... eu também sou filho de Deus...
- Não precisa me lembrar... vai, pega. Vai tomar um café que você tá pregadão.
- Jááá só valeu!
Ao sair cambaleando seu filho, Divino passa a analisar com os olhos o tal pergaminho. Risca alguns nomes, sublinha outros... até que algo lhe chama muito a atenção. Eufórico, pega o telefone e disca 666 com urgência.
- Raulzito?
- Sim senhor, foi mal pelo moleque, mas ele insistiu tanto que não consegui negar...
- Tá bom, esquece, tenho algo sério a tratar. Sabe esse número 2235-A?
- Um minutinho... Sim, P. Barradas... que que tem ele?
- Qual o delito desse?
- Negligência. É o segundo cachorro que ele deixa morrer, e também desapareceu um gato.
- Evidências?
- Diz que viaja muito...
- Raul, libera esse cara aí.
- Sim senhor...
- E mais, esse aqui: D. Pimentel, número 8686-B?
- Esse aí... peraí... ah, suspeitam que anda com tendências neo-nazistas, inclusive visitando a terra do Füher...
- Meu, libera esse guri. Ele é mais santo que eu.
- Ahn, tá bom. Mais alguma coisa, senhor?
- Sim. Esses que pisaram em formiga, tacaram pedra na vidraça do vizinho, colaram chiclete na poltrona do professor... cara, todos esses delitos mais baixos são passíveis de revisão. Quero que mande todo mundo pro purgatório até eu decidir o que fazer.
- Sim senhor...
- Que bom, que bom. É só por enquanto. Paz.
Ao desligar, estica as pernas sobre sua poltrona e cruza os braços atrás da cabeça, fazendo menção de descansar. Alguns minutos depois, o telefone o desperta novamente.
- Que é agora?
- Perdão senhor, é o Raulzito de novo... posso esclarecer só uma dúvida?
- Manda...
- Tem um aqui, de número 4760-C... eu não sei como classificar...
- Delito?
- Ah, diversos... cegou uma vaga, quebrou espelho alheio, atrapalhou 97% das suas aulas...
- Só isso?
- Não, tem mais um em especial que me chamou a atenção...
- E qual seria?
- Ele andou fazendo uma interpretação sarcástica do novo testamento, inclusive usando todos os nossos nomes num texto bobo e de baixo calão. Parece que publicou num desses correios virtuais aí, e tem gente até de Israel dando uma lida...
- Hum... já te ligo.
O Divino levantou-se, foi até uma estante e retirou quatro livros. Passou os olhos em todos. Após, sacou uns relatórios de uma gaveta, e novamente os conferiu. Passados vinte minutos, saca o telefone e disca 666 mais uma vez.
- Sim senhor, alguma conclusão?
- É, Raulzito... esse aí não dá não.
- Entendo, senhor. Obrigado e até logo.
O Divino põe-se, então, na posição de descanso outra vez; porém, antes de pregar os olhos, inclina-se à estante. Tira o telefone do gancho.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Aquele Ponto De Vista

Olha lá! Bradou o jovem, coberto de admiração,
Aquele é o tal planeta, então? E o mestre diz:
Sim, o próprio. Em breve chegaremos lá.
Conte-me sobre os nativos, se o tempo ajudar!

Filho, são eles bravos, malígnos. Como animais.
Pensam um pouco, dizem, mas cuidai:
Não vale o contato a pena, nem visual
Por terem uma ilusão pobre demais
De que únicos estão no espaço sideral.

Já não assim pensamos? E assim agimos,
Com egoísmo na penumbra ignorante?
Pois sim, há muito. Evoluímos.
Vivemos já só pelo instante.

Enquanto são estes primitivos,
Morrem e matam sem objetivo
Vivem tão pouco e tão sozinhos
Em meio a grandes multidões.
Vestem-se mal, comem demais
E sem motivo, bebem sem sede,
Pecam por suas ações.

São selvagens! Selvagens são!
Tratam ao próximo de antemão
Como inimigo fosse.
Alimentam uma crença tola
Que contradiz a própria história
E pela qual se aniquilam!
Ah, que gente infeliz,
Não me admira que ris!
Pois se ferem, e ferirão
Pela própria imaginação!
Acabam com o que comem,
Comem o que respiram
Respiram os próprios males,
Que visíveis, de tão cinza,
Flutuam, no ar, nos mares!
Queimam suas mães,
Que lhes deviam ser queridas!
Eles queimam as próprias vidas!

Diz-se, lá também há água
Que de tantos, pouca se faz
Porque a tratam por doce!
Embora tenha de doce nada
Fazem dela - gentes más,
Propriedade privada.

E quanto ao mundo em que eles vivem?
Ah, é este tão bondoso.
Que até agora não lhes pune!
Porém não penses ser ele imune
Ao seu instinto perigoso.
Morrerá tão fácil em breve
Pois de tudo, deu comida
A criaturas repugnantes
Que de tão irrelevantes
Deram-se por raça vencida
E por vingança nada leve
Destroem quem lhes deu a vida.

Não bastasse a própria morte,
Que há muito tempo planejam
Odiando-se a si mesmos,
Julgam ser um ser tão forte
Por mais primitivos que sejam.
Surgiram tão há pouco, agora,
Que ainda diz 'maldita hora
Que os fiz!', a própria terra.
Arrependida, por ora berra.
E contra si própria ela luta
Sendo eles a parte dela
Mais podre, e a mais bruta.

Filho, olhai pela janela:
E não hemos de nos iludir
Pois nada lá nos fará sorrir
Como uma simples estrela bela.

Mestre, tão logo chegaremos
(quão azul é este terreno!)
Após tantos e tantos anos.
A despeito do que foi posto
Em que pese o seu desgosto
Estou um tanto ansioso
A conhecer os tais humanos!

L. Di Marco

sábado, 11 de setembro de 2010

The Stalker (#2)

"E do meio do mundo prostituto, só amores guardei ao meu charuto"
Se não leste a primeira parte, não sigas.


Parte 6: A grande arte da profecia, em sua mais singela e inocente forma

Sentados no banco da praça, entre dois amigos quase sanguíneos, retratou-se a cena do que outrora lestes com detalhes e planos e esperanças... fez-se uma profecia. A de que, por puro sentimento inexplicável, o grande empecilho não tardaria a desmoronar, mas por conta própria, sem influência negativa. Ademais, este foi um dos assuntos discutidos: deixar que a natureza se suceda. Tanto quanto cresceu o primeiro musgo antes do gigante hotspot que hoje destruimos com grande vigor.
Não sei qual dos anjos malignos me ouvia, porquanto não fora minha surpresa menos eufórica que a de um cão no reveillon.

Parte 7: Mientras la observación diaria, aunque sea todavia gradual 

Dizia lá exatamente o que havia sido previsto um dia antes: o afastamento. E o coração (o próprio músculo estriado e involuntário) agitou-se com incredulidade; os olhos (os globos traiçoeiros) lubrificaram-se por si; e o leve sorriso involuntário invadiu-me o canto esquerdo da boca, como se um grande prêmio o antecedesse, e, ora, não pude disfarçar a satisfação. Eis-me, um ser humano completo, tanto quanto vós.
Não se pôde aguardar: e duas ligações foram feitas. 'Que tom alegre', me foi dito em ambas. Quanta discrição, meu amigo, dizia eu a mim mesmo. É provável que, fosse outra ocasião, fogos iluminariam o céu metropolitano. Pois, adicionou-se-a, tendo em vista o doce sentimento da liberdade mútua. Frases de incentivo à nova condição liam-se em suas próprias anotações, e isso tudo preocupava tanto quanto confortava; inexplica-se. Ainda assim, o dia mostrou-se tão leve quanto a sua razão.


Parte 8: A ansiosa espera, facilmente comparada ao sionismo

E assim foi a tarde de estudos. Sob consultas frequentes à rede. Por que será?

Parte 9: A primeira grande decepção

Como estivesse no caminho certo, uma pedra...
"Nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas..."
Tornou-se uma pedra em meu caminho, um sujeito que sequer conheço e ao qual não atribuo valor algum. Aliás, em pensar no mal que a ela proferiu para que a decisão fosse tão de súbito tomada... um certo rubor odioso me sobe à face. Se dantes neutro, já então muro abaixo - que dúvida! Era só uma questão de tempo.
O tênue laço que os unia fora reatado; resta saber a tensão que há de suportar. Como uma corda no lustre, que outrora estendia um graveto, e agora procura equilíbrio sobre uma árvore inteira. Não mais sei a validade de ser "aquele que puxará o peso" afim de derrubar-lhe. Na outra mão, vejo-me com a mesma consciência retraída e favorável à ação natural, cuja lei, se age sobre uma colmeia, destinará um relacionamento. Outrossim, um longo passo adiantou-se, não sendo mais dois estranhos - e tal atitude fora tomada legal e rigorosamente dentro das leis sociais (durante o breve período de liberdade).


Parte 10: A primeira grande observação

Concedidas algumas regalias, pude observar com mais detalhes o brilho do alvo, e constatei algo tão delicado. Não fosse a minha péssima interpretação masculina, eu poderia JURAR que seus olhos são de cores diferentes. Sim: um do outro.

Parte 11: A grande inspiração a la Vinicius de Morais e Álvares de Azevedo (não mos comparando, por óbvio)


À noite me deixaram só, mas só já estava há muito. A tecla F5 fora minha companheira por algumas horas, até um instinto incomunicável tocar-me o peito, o que me levou a pegar uma cadeira e um banco. Coloquei-os ambos no pátio de trás. Trouxe comigo uma malzbier, mais doce que chocolate em pó, por pura falta de opção; pus-me a abrir, o que me deu um certo trabalho. Servi-me da doce negra e de um caderno, e junto de uma caneta os coloquei em cima do banco. Algo veio-me à cabeça: o que não fazia há tanto; ora, era mesmo uma ocasião deveras alternativa, então prontifiquei-me a pegar o charuto velho que guardava há três anos em uma gaveta obscura. Observei-o com o entusiasmo de um pré-adolescente diante de seu primeiro copo de cerveja, conquanto já não fosse lá uma novidade. O fósforo foi encontrado tanto depois, que se procurasse fazer fogo com gravetos teria ganhado alguns minutos. Pois, sentei-me na bruma da penumbra. Não citei o violão? Bem, está citado.
Passei a tocar uma música que não existe, a despeito do que me disse um futuro doutorando: "agora ela existe". Meu charuto traiu-me algumas vezes, posto que o sabor fosse, de tão ruim, peculiarmente saboroso. Brinquei com a fumaça densa que formava figuras abstratas diante da única luz acesa. Era como um sonho - efêmera e dispersante como um sonho. Goles e acordes após, algo triste deu-se à luz, até acabar o ardido e intrigante charuto com o qual não me acostumara ainda. Antes disso, fotografei - tanto o banco quanto o charuto em uso, não obstante não será esta aqui exposta. Um cenário depressivamente "bossa nova" (bem notado, aliás!).
E não fosse os sons do espetáculo dos ascendentes de meu companheiro viajante, algo triste vos apresentaria aqui. Isso não me abalou, de fato; não se faz um mundo em um dia, e não menos é a música para mim.

Parte 12: A segunda grande decepção

Apaguei o charuto antes do seu quinto final na própria garrafa. Desfiz-me das cinzas. Alcancei o objetivo ao me sentir sessenta anos mais velho - uma sensação ímpar. Pus-me a olhar ao redor. Foi quando baixei o pomo e concluí: sou um novato; não fosse, teria servido whiskey, e não cerveja.

Parte 13: O início, ou o fim?

O farol indica o caminho, sim, mas não por indicar - é preciso uma razão, ainda que ínfima. Um navio ou um bote: que diferença faz a quem se afoga, porquanto um vira o outro, e ambos viram na água?
Só o tempo não basta; é preciso um farol aceso. E eu o vi: um farol ofuscante no horizonte. Análogo, mantive meus pés atados ao chão da fina areia costeira enquanto o sol se punha. Senti a terra tremer sob meus pés.

E uma vez que a terra treme, há de vir um terremoto. Fato.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

A Tradição Secular

O concunhado de um conhecido de um amigo meu me foi apresentado num almoço tardio, durante o qual tomei nota de uma história secular de seus antepassados, que se resume a seguir.

Aqui é o "a seguir" mencionado no último parágrafo. E não menos localizado estava um dos primeiros nomes da família, que fora um dos garimpeiros que cedo chegaram na região, em meados do século XVIII. Diz-se que fora um homem muito especial, razão pela qual lhe foram atribuídos inúmeros casos - todos místicos. O velho era uma lenda.
E, por assim dizer, jurava-se na região até há pouco que, antes de partir, ele havia descoberto uma suposta caverna - ele mesmo a descrevia - a qual jamais fora encontrada. Visitava-a quase que diariamente, conquanto jamais tenha mencionado sua localização, e tampouco lhe perguntavam: conheciam-no bem. Certo dia, o velhinho sumiu por meses. Sem explicação, voltara dois dias antes de morrer, entregando ao filho mais velho um baú retangular de bom volume. Um caixote arcaico de metal denso, bordado a ouro nórdico e com o símbolo que se tornaria o então brasão da família. Ao entregá-lo, disse em claras palavras:
- Meu filho primeiro, não abrais este baú, jamais, sem apto julgamento. Repassai-o, sim, ao primogênito.
- Ora, porém, meu pai querido, que há dentro dele, se não lhe ouso ou abuso indagar?
- Qual! Eis o mistério, meu jovem. Que é já de todo vosso.

Sem dizer mais nada, partiu para sempre. Diz-se que morreu de "Dever Cumprido", de acordo com os
médicos da época. Ninguém discutiu o desejo do velho, nem mesmo o primogênito, um simples artesão de quem muito pouco se sabe, a não ser que cumpriu a tradição, passando o baú para o seu primeiro filho nos fins do século XIX.

Este último era o seu trisavô.Repassara para o bisavô, que tampouco teve a coragem de desafiar a tradição, passando, assim, para o avô, que, nos anos setenta, chamou o pai do sujeito e lhe fez sentar ao seu lado. Puxou o baú de dentro de outro, muito maior, que jamais ninguém havia visto aberto antes, exceto o dono. Nesta ocasião, seu pai tinha doze anos recém feitos. Seus olhos brilharam quando viram o ouro nórdico reluzente, apesar do aspecto bicentenário, sendo manuseado com cautela.
- Meu filho, este baú me foi passado por teu avô, que recebeu do pai, e assim foi por gerações e gerações.
- O que tem dentro, papai?
- Um mistério, filho. Guarde este baú como se fosse a sua vida, e só o abra se se sentir seguro o bastante para destruir uma tradição de gerações e gerações... guarde-o bem e, se for o caso, passe-o para o seu primeiro filho, repetindo estas palavras, que jamais devem ser ditas de novo até este dia chegar.
- Sim senhor...

Em 1988, nascia o tal concunhado. A primeira impressão que tive ao vê-lo foi a de que ele definitivamente é um cara corajoso. Ainda no almoço, o garçom fingiu não o ouvir, por pura birra, apesar de lhe ter chamado em alto e bom som por várias vezes, e sem faltar-lhe com educação. Tal comportamento lhe causou certa indignação: foi até o gerente do restaurante, que nada fez senão uma breve promessa de observação. Ele voltou até o lugar onde estávamos, sentou-se sem pressa e não fora mais alarmante do que uma formiga no tapete. Segundos após, o chão encontrava-se coberto de cacos de vidro, massas, molhos, carnes variadas e alguns tipos de salada. "Acho que ele vem, agora", disse com um mísero sorriso no canto da boca. Nada lhe foi cobrado.

Na virada do milênio, ainda criança, seu pai o fez participar do tradicional rito.
- Filhão... esse baú pertenceu ao teu avô, que ganhou do pai dele, que ganhou do pai, do pai, do pai do pai... e agora chegou a tua vez.
- Pode abrir?
- Não! Quer dizer, não sei... só se tu tiver coragem... mas eu acho que é melhor passar pro teu filho...
- Tá bom.
- Mesmo? Então tá, pega aqui e guarda bem, tá?
- Sim.

Ao se afastar, lembra-se bem, repetiu o piá para si mesmo:
- Eu não tenho filho!
E abriu.

A pergunta que estás fazendo a ti mesmo é a mesma que fizemos às 13h daquele dia, quando já havíamos chegado na casa do tal sujeito que nos contava tão magnífica história.
 
- E o que tinha dentro, caramba??!!
Um silêncio fez-se e dominou a sala. O cara levantou do sofá, foi até um dos quartos e, dois minutos depois, voltou com um embrulho na mão.
- Isso.
- O que é?
Ele tirou a toalha que cercava o objeto.
- É um outro baú, pouco menor, e um bilhete. Diz para eu entregar para o meu filho.

Segundo nos disse, não teve e nem terá coragem de abri-lo. Outrossim, já preparou um discurso bem impactante para que, no futuro próximo,  seu primeiro filho não encontre lacunas espertinhas sem antes lhe pesar a consciência.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

The Stalker

Ou, literalmente, "o perseguidor". Nunca se imaginou nesta situação? Chega a ser assustador, malgrado seja a situação excêntrica e, de certa forma, excitante.
Segue o relato de minha primeira experiência nestes termos. Se desistires logo na primeira parte, és um ser humano normal (ou ordinário?).

Parte 1: A crua análise, como a de um lobo ao avaliar uma lebre

A jovem foi notada há meses atrás, durante o início de uma aula. A história é uma disciplina tão filosófica quando a própria filosofia, uma vez que esta é vítima dos homens, enquanto estes são vítimas daquela. E por falar em vítimas, vitimou-nos as centenas de exercícios inacabados acerca dos homens antigos. Nos seus íntimos, ninguém confessava a negligência - somente ela, a verdadeira vítima, foi quem teve a iniciativa de avançar e perceber que, das centenas de questões, mais da metade não condizia com seus gabaritos.

Nesta ocasião, sentou-se ao lado do narrador. E protestou. Os exercícios estavam de fato adulterados, e sequer o mestre havia notado. Ora, uma líder exemplar - não se admira sua postura límpida e enobrecida. Não houve outra reação: foi notada. E, a partir de então, dia após dia foi observada. No princípio, leves observações a nível masculino - um campo, pois, nada amplo; com o passar do tempo, foi progressivamente se mostrando mais e mais interessante.

Parte 2: Os primeiros registros sentimentais, consoante livros pré-realistas


O que outrora era ignorado, passou a ser seriamente admirado, conquanto fosse nada patológico. A cada frase de humor proferida pelos mestres, uma diferente reação lhe pertencia: se o contexto era infantil, meigo ou feminino, despejava um raro sorriso leve e brilhante, cujo preço não se avalia; se o assunto era promíscuo, porém engraçado, deixava escapar um envergonhado sorriso de canto, tímido e retraído, porém não menos belo. Quando o tema era, além de promíscuo, suportavelmente pesado, sua boca não se mexia: pelo contrário - desviava o olhar como se preferisse não ter ouvido ou participado de tal cena. Nada mais admirável!

Parte 3: As memórias puxadas do interior, como um flashback hollywoodiano


E de um ímpeto cerebral, imagens antigas vieram à tona - ainda mais antigas do que o dia das questões sem gabarito. Foi na classe de geografia que uma questão foi abordada: quem ousaria morar fora do Brasil. Uma mãozinha foi levantada no fundo da coluna de classes à direita da sala. Era ela. Indagada, respondeu onde lhe agradaria morar; ao que me recorda, foi dito "Austrália", e/ou alguns outros países europeus. Questionado o motivo, respondeu semelhante a isto: "A vida no Brasil é muito pouco valorizada". O silêncio ao redor da sala confirmou: ninguém estava esperando uma visão crítica tão bem feita partindo de uma menina aparentemente frágil e discreta. Seguiu com exemplos bárbaros, como o rapaz que foi eletrocutado na frente do Direito-UFRGS, e nada ou quase nada foi feito; as vidas tiradas por objetos fúteis, entre outras feridas por ela tocadas. Na época, lembro, virei-me para minha colega e comentei "temos uma revolucionária na sala". Nos dias de hoje, lembro-me com certo orgulho de tais declarações. O que mudou?

Parte 4: O abuso acovardado, como o do sociopata descrito na música Shy da Sonata Arctica

A situação começou a ficar crítica quando, de tanto insistir na irresistível tentação que é observar suas expressões faciais, belas e puras, como a de uma ideia fixa machadiana, ela notou. A crença é esta: ela certamente notou, e não há nada que possa desfazer isso. O que normalmente nunca me foi problema - a aproximação, o contato, a conversa, a proximidade - agora é um pesadelo, e cada vez mais distante: é tarde demais; e a jovem que desperta sentimentos estranhos em um sujeito estranhamente sentimental não é nem a mais bonita, nem a mais sensual, nem a mais chamativa... mas é a mais brilhante. E é isso que a torna a mais especial, acima de todas as qualidades dantes descritas: seu brilho misterioso.

Parte 5: O desfecho, ou a introdução?


Recentemente, tudo indica que tenha comentado com seu companheiro. Sujeito este que não é nem o mais belo, nem o mais feio, nem tampouco especial de prima vista, mas certamente é dono de uma sorte surreal (ah, mas duvido muito que o saiba!). Não obstante seja dever admitir que o ciúme que se lhe dirige é ainda muito jovem, e bem menor do que a admiração. A despeito de estar ciente, o jovem bem afortunado conta com a discrição; não procurou satisfações, nem atribuiu olhares provocantes, nem nada de diferente. Talvez seja essa sua grande qualidade.
Já sua fonte vital, retribuindo os olhares frequentes, seja por incomodação, seja por qualquer outro motivo, deixa transparecer certa inquietação. Com muita frequência, sentamos em lados opostos das salas. Vejo-a segundas, terças e quintas. Quartas também, mas do lado de fora, e sempre acompanhada. De él, por supuesto. O que me finca como agulhinhas de anzol enferrujado, mas faz-se tão efêmero quanto uma lágrima de criança. Torna-me uma isca em combustão.
Energia? Atração? O fato é que não se trata de uma passion compulsiva nem nada do gênero. Compreende apenas uma certeza: a de que foi encontrada a parceira ideal para o lento leito do envelhecimento, ainda que jamais se concretize tal acontecimento.
Hoje as coisas foram diferentes. Antes da aula, pus-me a sentar atrás de onde julguei que ela sentaria. No entanto, temendo uma má-interpretação (nada errônea), mudei-me para a coluna da direita, mas para trás, na penúltima fileira, de onde ainda a veria discretamente, uma vez que sempre ancorava-se ao meio da coluna esquerda.
Porém, algum motivo - ou bom ou ruim - a fez optar, ao chegar, por sentar exatamente atrás de mim, na última fileira.

Nem sempre a estratégia lobal vence a astúcia leporina. Fato.





                                                (Se porventura não entendestes nada, pago-me do trabalho impessoal.)

[Dedico o título e a abordagem do tema ao meu amigo gaudério-biólogo de vários metros de altura, Sr. Marcelo.]

domingo, 22 de agosto de 2010

Os Variados Tipos de Rock

"Pela primeira vez desde a criação deste blog, limito-me, por questões temporais, a transcrever um texto clássico, mas genial, que recuperei de minha infância. Quem não o leu ainda, chegou a hora de esclarecer algumas dúvidas. PS: as fotos ficaram por minha conta."


"Você rockeiro deseja explicar ao seu filho como são as complicadas nuances e sabores do Rock and Roll? Então use as dicas abaixo e conte para ele como se fosse uma historinha de conto de fadas.“No alto do castelo, há uma linda princesa - muito carente - que foi trancada, e é guardada por um grande e terrível dragão…” 


METAL MELÓDICO:O protagonista chega no castelo num cavalo alado branco, escapa do dragão,salva a princesa, fogem para longe e fazem amor. 



TRUE METAL:O protagonista chega no castelo e vence o dragão em uma batalha justa usando uma espada. Banhado no sangue do dragão, transa com a princesa. 
 















THRASH METAL:O protagonista chega no castelo, duela com o dragão,salva a princesa e transa com ela. 



HEAVY METAL:O protagonista chega no castelo numa Harley-Davidson, mata o dragão, enche a cara de cerveja com a princesa e depois transa com ela. 




FOLK METAL:O protagonista chega acompanhado de vários amigos e duendes tocando acordeon,alaúde, viola e outros instrumentos estranhos. Fazem o dragão dormir depois de tanto dançar, e vão embora, sem a princesa, pois a floresta está cheia de ninfas.
 


VIKING METAL:O protagonista chega em um navio, mata o dragão com um machado, assa e come.Estupra a princesa, pilha o castelo e toca fogo em tudo antes de ir embora. 
















DEATH METAL:O protagonista chega, mata o dragão, transa com a princesa, mata a princesa e vai embora. 



















BLACK METAL:Chega de madrugada, dentro da neblina. Mata o dragão e empala em frenteao castelo. Sodomiza a princesa, a corta com uma faca e bebe o seu sangue em um ritual até matá-la. Depois descobre que ela não era mais virgem e a empala junto com o dragão. 
PS: essa foto é real.




GORE:Chega, mata o dragão. Sobe no castelo, transa com a princesa e a mata. Depois transa com ela de novo. Queima o corpo da princesa e transa com ele de novo. 




















SPLATTER:Chega, mata o dragão, abre-o com um bisturi. Sodomiza a princesa com as tripas do dragão. Abre buracos nela com o bisturi e estupra cada um dos buracos. Tira os globos oculares da princesa e estupra as órbitas. Depois mata a princesa, faz uma autópsia, tira fotos, e lança um álbum cuja capa é uma das fotos.  





DOOM METAL:Chega no castelo, olha o tamanho do dragão, fica deprimido e se mata. O dragão come o cadáver do protagonista e depois come a princesa.














WHITE METAL:Chega no castelo, exorciza o dragão, converte a princesa e usa o castelo para sediar mais uma “Igreja Universal do Reino de Deus”.



















NEW METAL:Chega no castelo se achando o bonzão e dizendo o quanto é bom de briga. Acha que é capaz de vencer o dragão; perde feio e leva o maior cacete. Foge e encontra a princesa. Conta para ela sobre a sua infância triste. A princesa dá um soco na cara dele e vai procurar o protagonista Heavy Metal. O protagonista New Metal toma um prozak e vai gravar um disco “The Best Of”.
 














ROCK N’ROLL CLÁSSICO:Chega de moto fumando um baseado e oferece para o dragão, que logo fica seu amigo. Depois acampa com a princesa numa parte mais afastada do jardim e depois de muito sexo, drogas e rock’n roll, tem uma overdose de LSD e morre sufocado no próprio vômito.
 

PUNK ROCK:Joga uma pedra no dragão e depois foge. Pixa o muro do castelo com um “A” de anarquia. Faz um moicano na princesa e depois abre uma barraquinha de fanzines no saguão do castelo.





GRUNGE:Chega no castelo e tem uma overdose de heroína.
















 



PROGRESSIVO:Chega, toca um solo virtuoso de guitarra de 26 minutos. O dragão se mata de tanto tédio. Chega até a princesa e toca outro solo que explora todas as técnicas de atonalismo em compassos ternários compostos aprendidas no último ano de conservatório. A princesa foge e vai procurar o protagonista Heavy Metal.
 













HARD ROCK:Chega em um conversível vermelho, com duas loiras peitudas e tomando JackDaniel’s. Mata o dragão com uma faca e faz uma orgia com a princesa e as loiras.


















GLAM ROCK:Chega no castelo. O dragão ri tanto quando o vê que o deixa passar. Ele entra nocastelo, rouba o hair dresser e o batom da princesa. Depois a convence a pintar o castelo de rosa e a fazer luzes nos cabelos."