Fui chegando ao primeiro posto Mc Donald's de dentro do shopping, aqueles que só vendem sorvete. Aguardei vários minutos na fila, ocasião que só ocorre quando a abstinência glicídica torna-se uma patologia.
Quando chegou minha vez, a surpresa:
- Não temos sorvete de chocolate, moço.
- Oi? Como assim?
- Só lá em cima, no outro quiosque.
- Hunf. Tá.
Contrariado, porém complacente, esperei na fila do elevador. Quando o primeiro chegou, depois de uns cinco minutos, todos da fila à minha frente entraram, menos... eu. Atrás de mim, notei uma senhora com um vestido de bolinhas radicais que reclamava muito do elevador que não chegava. Isso acabou por me contagiar, e comecei a ficar angustiado, o que me fez optar pela longínqua escada.
Caminhando pelo longo labirinto do Shopping Total, deparei-me com uma loja de camisas pólo, o que me chamou atenção - não pelas camisas, mas pela tela que passava ao vivo uma partida de Pólo (aquele hockey sobre cavalinhos). Não me era estranha aquela cena; lembro-me de ter feito isso várias vezes durante o ano, e curiosamente sempre pegava o jogo de pólo passando ao vivo. Não obstante, meus sonhos infantis foram destruídos quando, da vitrine, pude ver o dono da loja sacando o controle remoto e apertando o botão de pause, desligando um aparelho e retirando um maldito DVD. Então era esse o jogo "ao vivo" que eu sempre assisti com orgulho; uma verdadeira farsa, uma traição!
Saí desamparado daquele lugar e me dirigi à escada com pressa, apesar de o episódio anterior não ter me tomado mais do que um minuto. Ao alcançar as escadas, subi-as com certo vigor; não adiantaria nada chegar depois do elevador - iria ferir meu orgulho.
Assim que cheguei ao segundo andar, corri ao elevador para checar: a porta estava fechada. Sorri de prazer ao notar que fiz a escolha certa. Virei-me em direção ao segundo posto do Mc Donald's atrás do meu necessário sorvete de chocolate. Quando lá cheguei, tive uma desagradável sensação ao notar a senhora do vestido engraçado pegando um sorvete. Ela não só chegou antes de mim, como lhe seguiam três pessoas na fila. Fiz uma automassagem atrás da orelha para afastar a indignação e entrei na fila. Demorou muito para eu ser atendido:
- Chocolate nós não temos, senhor... só na praça de alimentação.
- Quê? A moça lá embaixo disse que vocês tinham!
- Pois é, mas desde ontem está em falta, e ela sabe disso...
- Grande. Vocês formam uma ótima equipe, parabéns - disse, indignado, seguindo em direção à parte mais distante do shopping: a praça de alimentação.
Nesta hora, eu quase desisti, confesso; mas a vontade de sentir o sabor do chocolate gélido e industrializado, cercado de trigo seco com açúcar, ah... essa vontade me fez seguir em frente, e fui.
No meio do caminho, porém, resolvi adentrar no famoso banheiro família. O segredo deste ambiente sagrado é que foi criado para uso coletivo, porém o grupo deve envolver crianças e responsáveis. Isso o torna mais limpo e mais relaxante, o que sempre me faz optar por lá. Chego perto da porta, olho para os lados - o banheiro masculino é logo ao lado - e , sem ver funcionários ou usuários dos outros banheiros, me enfiei lá dentro.
Ao trancar a porta, me deslumbrei com o brilho do local, que é tão grande quanto meu próprio banheiro. O espelho era enorme, havia duas pias e duas patentes - uma era infantil. Urinei com cuidado para manter a homeostase do ambiente e apertei a descarga após. Lavei as mãos em ambas as pias, usei tanto o papel quanto o secador e me obsevei por muito tempo no espelho. Quando estive seguro de que não precisaria mais usufruir de nada lá de dentro, resolvi abrir a porta. A surpresa foi que, pela primeira vez, o segurança estava exatamente na frente de tal banheiro, que é estrategicamente escondido. Era evidente que me chamaria a atenção. O inesperado - para ele - é que eu estava muito engraçadinho.
- O senhor sabe ler? - disse em tom grave, referindo-se à placa com os dizeres "Banheiro Família".
- Sei sim, o que é que o senhor não conseguiu ler?
- Quê?
- Pode dizer, que eu leio pro senhor.
- Não é isso, rapá! Tu não viu que esse banheiro é só pra família?
Inspirei, fazendo cara de compreensível.
- Pois é, eu sei sim.
- Então por que tu tava ali dentro?
- Porque eu moro sozinho!
O cara ficou alguns segundos sem resposta, tempo que usei para dar o fora dali. Provavelmente ele ficara pensando sobre isso por um bom tempo até perceber que foi feito de bobo.
Segui para a praça de alimentação com certa agonia; parecia que tudo estava conspirando para que eu não adquirisse o sorvete, o que me deu ainda mais ânimo para comprá-lo - questão de honra.
E fui. Chegando na praça, desviei dos maníacos que tentavam me obrigar a comprar em seus restaurantes, inclusive me segurando pelo braço. O Mc Danado's é a última loja, aos fundos do local. Lá, entrei em uma fila quilométrica para, horas mais tarde, descobrir que era a errada.
- A fila do sorvete é aquela ali, senhor.
Nem discuti. Só entrei na outra fila, respirando sangue.
Chegou a minha vez, ou quase; uma senhora passou na minha frente, e antes que eu pudesse dizer nada, ela foi atendida. O pedido dela era três casquinhas, ou mistas ou de creme, um McFlurry de Suflair ou Ovo Maltine e um copo d'água. Duas crianças e um velho batatudo surgiram atrás dela do nada. Conforme iam decidindo os sabores de fato, o velho ia alcançando às crianças, até ficar com um para si. Este processo de tortura me levou mais uns seis minutos, pelo menos mentais.
- E para o senhor?
Respirei fundo.
- Uma casquinha de chocolate.
O tempo parou por alguns segundos. Era como se eu visse tudo ao meu redor, e tudo me visse também, em movimentos circulares e em câmera lenta, de cima, de baixo, pelos lados... até um balde de água fria irromper-se sobre meu rosto.
- Não temos, só no quiosque um, lá embaixo, senhor.
Tremi.
- Peraí. Eu fui lá, eles me mandaram pro segundo, que também não tinha e acabou me mandando pra cá. Vocês tão me fazendo de palhaço?
Eu pude ouvir um "sim" escapando pelos seus olhos gosmentos, mas não teve coragem.
- Não senhor, desculpa... mas não tem mesmo, só lá embaixo...
- EU JÁ FUI LÁ EMBAIXO $#@&*!!!
- Calma senhor, não tem o que fazer, aqui não tem mesmo...
- EU TE VI FAZENDO UMA MISTA AGORA MESMO!
- Mista tem, senhor...
Eu quase infartei. Não entendo como funciona a tecnologia do Mc Diabonald's, e nem quis saber; só virei as costas e fui correndo para o quisque debaixo.
Ao chegar, vi um guri saindo com uma casquinha de chocolate nas mãos. Gelei de raiva. Sequer esperei a pequena fila que se formava.
- Olha aqui, o que tu pensa que tá fazendo?! Não disse que não tinha chocolate? Me fez subir e perder tempo duas vezes e agora tá servindo o que eu pedi pros outros?
Acho que me exaltei.
- Ah, desculpa senhor, eu me enganei... na verdade é no segundo quiosque que não tem chocolate...
- É, EU SEI!
- Eu vou fazer uma pra ti, peraí.
E, por algum motivo, as crianças da fila não se meteram na decisão.
Ela serviu uma casquinha cremosa de chocolate e me deu. Paguei e não proferi uma palavra sequer.
Na primeira lambida, a constatação:
O gosto estava tão neutro quanto um picolé de água benta.