sábado, 29 de maio de 2010

Casamento Arranjado

Quando eu abri os olhos, estava descendo uma escadaria de pedra escura junto de uma jovem e de um senhor. Eu estava de costas e, para não cair, tive de me virar com certa agilidade. Assim que o fiz, o senhor, nobremente trajado, estendeu-me a mão dizendo em palavras claras e decididas:
- Ok, aqui está o teu. E aqui o teu, minha filha.
Deu-nos um anel brilhante para cada. Pus no bolso sem compreender; fato: aquele sujeito não parecia ser qualquer plebeu. Logo que descemos até o último degrau, comecei a cogitar algum rascunho de ideia.

Um saguão em uma masmorra coberta de pedras antigas e iluminada por tochas - eis o ambiente em que nos encontrávamos. Por algum motivo, senti-me seguro por lá, apesar de desconfiado. Certamente era um engano: eu não sabia quem era a moça, tampouco seu pai; nem mesmo sabia o que era aquele lugar. O que imaginava é que estava sendo incorporado à nobreza, tratado como um membro da corte. Conquanto o desejo fosse semelhante à mentira de Encruzilhada - contar-lhes a verdade -, vi-me novamente no mesmo dilema: minha cabeça estava em jogo.

E assim fui seguindo o rei. Sim, não havia dúvidas: ele era o rei. Conforme íamos passando pela masmorra, dobrando num portal de pedras grandioso à esquerda - donde cuidavam dois guardas muito sérios - as pessoas daquele subterrâneo ambiente pedregoso iam nos admirando com o olhar. E cumprimentavam-nos como se fôssemos deuses: o rei, a jovem princesa e... eu. Sequer tive coragem de encará-la, mas sua expressão era conformada. Creio que o costume já não a assustava. Na certa, torceu para que eu tivesse dois braços, duas pernas e quem sabe um temperamento não muito agressivo. Ela tampouco olhava para mim.

Quando saímos daquele ambiente, entrando em uma nova passagem fortificada e de teto baixo e úmido, demos alguns passos até um novo local, desta vez aberto. Ao fim do corredor, via muita iluminação e uma arquibancada com inúmeras pessoas, apesar de o novo ambiente também ser fechado por longas paredes pedregosas. Notei algumas colunas redondas e uma escultura gigantesca de um velho barbudo imponente e nu. Quando entramos, logo o rei se desvencilhou de nós, e a jovem foi para junto das suas. Eu aproveitei o ensejo e senti-me no saboroso anonimato por alguns minutos, nos quais aproveitei para indagar um jovem tolo que admirava a cerimônia festiva e barulhenta com uma taça de vinho na mão. Ele, sozinho, sorria de prazer. Cheguei até o sujeito com o único propósito de extrair-lhe algumas informações acerca de meu paradeiro.

- Cara, em que ano estamos?
- Hã? - comecei a me apavorar. Veio-me uma nova ideia em mente.
- Tu conhece Jesus Cristo?
- Quem é esse? - disse o sujeito, sorrindo.
- Hmm... Alexandre Magno?
- Não conheço teus amigos, desculpa. - neste momento, resolvi apelar para a minha intuição.
- Cara, isso aqui é a Grécia?
- A Grécia? Ah, dizem que a Grécia é tudo isso aí fora...
- Ok, obrigado.
- Tudo bem. Mas não devia ligar pra esses estrangeiros.

Eu tinha certeza de que estava na Grécia antiga. Restava saber em que fase, e, se fosse o caso, em qual cidade. Rezava para mim mesmo: "não seja Esparta! Não seja Esparta!"

- Prezados cidadãos de Esparta! - dizia o Rei em voz alta e ameaçadora. Gelei. Se antes tive medo de ser descoberto, agora a chance de eu ser morto seria a mesma de eles ouvirem meu sotaque. Enquanto o Rei anunciava o casamento de sua filha, as pessoas riam admiradas e felizes na caverna, ou seja lá o que fosse aquilo. A palavra - por incrível que pareça - foi dada à moça, que começou um discurso nobre acerca de nosso matrimônio. Alguns me olharam, e logo o rei dirigiu-me um olhar de censura; então, resolvi ir até o lado da moça.

Enquanto ela falava algumas palavras de reflexão, percebi o quão improvável era aquela situação. Lembrei-me do anel e comecei a suar frio. Eu não sabia onde o havia posto. Cada palavra que ela dizia encaminhava-se ao final do discurso, e meu pescoço sentia-se decapitado aos poucos. Foi quando finalmente lembrei: está no bolso!

- Agora tu podes colocar o anel no dedo dela! - dizia o Rei para mim em voz alta, para que todos ouvissem. Ela esticou a mão. Eu coloquei a mão esquerda no bolso, mas... não tinha bolso...

Eu estava de cueca.

(Eis detalhadamente o sonho que me despertou hoje pela manhã)

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Soneto ao Compadre Moreno

Se Soubesse Antes o que Sei Agora

Que há tanto não vos viso, posto que almejo,
Evidência mais fatídica não há;
Meu moreno compadre esbelto, já
Sinto-me por vós um saudoso sertanejo.

Irmandade ostentada, adaga e queijo,
Sois meu acorde harmônico, a nota lá;
Amo-vos conquanto o ardido tempo vá
Criando-nos uma barreira - desejo!

E o que é que ocorre entre nós? Castigo.
Do tempo - o que fadiga a nossa íris
O instrumento que dantes era perigo;

Mais que tudo nesta vida sois amigo,
És irmão, e porquanto ainda vives
Vives em meu peito, vives comigo!

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Uma Proposta Maligna

*Orgulhoso, passo subitamente a tinta e a pena ao meu notório amigo escritor, Dr. Alberto S. Pastelina.*

Estava eu recostado em um banco da praça verde, pensando na vã filosofia de Shakespeare, às seis da tarde; não mais via as crianças que urinavam nos arbustos e os cães que pulavam corda até minutos atrás. Como diria o velho Albinistes, "mais vale um porco albino do que um albino porco", e sob este mote valiosíssimo, abro minha narrativa acerca de uma tarde marcante de meu passado.

Quando de súbito me aparece um sujeito engravatado segurando uma maleta. Havia outros assentos na praça, conquanto tenha optado pelo meu. Desconfiado, tive o reflexo de levantar, mas o homem se antecipou:
- Não, não; não te afasta. O que trago aqui dentro pode-te interessar.
- Ah, não, nem pensei. É que estou mesmo atrasado...
- Atrasado? O senhor me perdoe, mas estamos ociosos em uma praça às seis da tarde de quinta-feira.
- É... tens razão. - disse eu, sentando novamente. Não portava nada de valor àquela hora; não havia nada a temer, a princípio. - o que trazes aí?
- O quê? Ah, na maleta? Nada demais.
- Hum. - resolvi calar-me. Se não me contou, é porque não devo saber.
- Na verdade, tem algo, sim. Porém, antes de mostrá-lo...
- O que o senhor quer, afinal? - indignei-me. O sujeito tratava-me como um parvo, como um velho insipiente. O que de fato aparentava, sem meus livros em mãos e com um ar arisco de gato ante o churrasqueiro.
- Calma lá - pediu o homem - Eu não pretendo enrolar muito... deixa-me apresentar. Eu sou o Diabo. - e estendeu sua mão.

Alguns segundos de silêncio antecederam meu sorriso irônico. Ou ele estava me zombando, ou era fugido de um sanatório. Recolheu a mão por desistência e continuou:

- Não estou brincando, tampouco fugi de lugar algum. Eu sou o Diabo, o próprio. Podes me chamar de Lúcifer. Ou do que quiseres; o que mais tenho é apelido.
- Então o senhor é o Diabo.
- O Diabo.
- O Diabo?
- O Diabo.
- Certo, então... imagino que seja fácil provar? - o homem também sorriu ironicamente e desviou o olhar.
- Eu não estou aqui para provar. Mas não tenho dúvidas que me acreditarás.
- Ah, disso não tenho dúvidas também. Basta tacares fogo naquele bebê, ou empalares aquela senhora ali, ou quem sabe... - neste momento, o homem abriu a maleta.

O conteúdo fez meus olhos e minha mente calarem-se.

- Alberto, eu vim até aqui para comprar tua alma. - mais alguns segundos de silêncio separaram minha audição de minha visão. Enquanto as notas de R$ 100,00 que engrossavam a maleta faziam-se mais atraentes, percebi que a brincadeira estava indo longe demais.
- Minha alma. Com notas falsas.
- Notas falsas? - o homem puxou uma lupa e analisou a marca d'água em minha frente. As malditas notas eram reais, em todos os sentidos.
- O que diabos... digo, o que o senhor está fazendo com tanta grana bem no meio da Redenção?
- Já disse, Alberto; vim comprar tua alma.
- Como sabes meu nome?
- Diz no teu livro. - notei que, ao meu lado, no banco, estava um exemplar da Bíblia Albina com uma foto minha. Eu mesmo já a havia ignorado. Olhei em seus olhos. Eles me diziam claramente que o sujeito não era louco.
- Isso é algum tipo de brincadeira?
- Já disse, eu já disse! Não queres me desapontar, não é? Vamos, aperta minha mão. Podemos fechar negócio. - estendeu novamente a mão. Um calafrio atingiu meu peito, como se tivesse acreditado pela primeira vez naquelas palavras.
- Que interesse tens na minha alma?
- Como se não soubesses. És um grande escritor, um homem sábio. Adoraríamos tê-lo conosco nas profundezas das trevas.
- E como eu me faria útil?
- Toda alma é útil de certa forma, meu caro. Nem que seja evitando o paraíso. - ao proferir esta palavra, o homem teve uma expressão de angústia, repugnância; tamanha era sua dedicação que teria convencido qualquer um naquela praça. No entanto, não era qualquer um.
- Certo. Eu não sou lá muito religioso. Sequer acredito no senhor.
- Eu entendo. A diferença é que me faço presente, bem aqui, na tua frente.
- Tu não podes ser bem certo...
- Ótimo, Alberto. Então aperta minha mão, aceita meu dinheiro! Já que não te represento perigo... - eu tive vontade de apertar sua mão, que mais uma vez me fora estendida. Todavia, algo me bloqueava. Aquele velho temor humano do desconhecido. - O que foi, Alberto?
- O que tu vês em meus olhos?
- Olhos? Eu vejo algo bem na tua testa.
- Ora... e o que será?
- Uma data.
- Data?
- A data do teu óbito.
- O senhor já foi longe demais...
- Eu vejo o dia, o mês e o ano que irás para o outro lado. Só resta saber qual lado. - e estendeu novamente a mão. Eu nem pensei em apertar.
- E quando é que isso vai acontecer?
- Estás perdendo tempo.
- Pois sim...
- Não tenho interesse em ganhar um fã. Não como Ele. Vamos: é pegar ou largar.
- Digamos que eu aceite.
- Sim?
- O que aconteceria comigo?
- Tirar-te-ei algum valor em vida e acompanhar-me-ás nas trevas eternamente. Mas por um milhão; não é válido?
- Um milhão?
- Eu já esperava por isso - e abriu o paletó, retirando do bolso um colar de diamantes. Não consegui mensurar o valor daquele objeto, que brilhava como se portasse luz própria. Não consegui evitar meu olhar ganancioso.
- Posso... tocar?
- Podes tê-lo em mãos até a morte. E em lembrança por toda a eternidade.
- Basta apertar tua mão.
- Estamos começando a nos entender.

Olhei para o sujeito com a mão estendida, muito bem arrumado, e depois ao nosso redor. Ninguém estava lá, e o pôr-do-sol já apontava. Olhei para a maleta e, fixamente, para o colar.

Ele não brilhava mais como antes.

domingo, 9 de maio de 2010

Atuação da Minha Vida

Há algumas semanas atrás, fui até a casa de uma grandessíssima amiga, leitora do Blog e dona de uma chácara admirável em Encruzilhada do Sul, a prezada senhorita Fátima. Junto de mim, estavam a minha querida (e ilustre) amiga Liliane; a irmã da Fátima, Teca, e o sobrinho dela, Ruy. As horas de viagem foram preenchidas por muitas gargalhadas, principalmente nos pedágios, mas esta é uma história tão prazerosa que vou guardar para mim.

Fomos muito bem recebidos na vasta propriedade de Fátima, tanto pelas pessoas quanto pelos animais (que são praticamente pessoas). Na verdade, dificilmente me senti tão bem hospedado antes. Comida ótima, bom aposento, mas o melhor mesmo foi a companhia. Não tive ainda a chance de agradecer decentemente a quem dedicou o fim de semana para mim, então espero que possa expor o mínimo da minha gratidão através deste post.

Não obstante, houve algo mais do que flores e belas paisagens naquele fim de semana especial. Tudo começou na tarde em que chegamos, quando o Ruy me comunicou que adoraria pregar uma peça em seu primo, que mora lá. A idéia era a seguinte: eu me passava por seu amigo belga, colega intercambista. Concordei, apesar de considerar a idéia bem arriscada; porém não nego que esta brincadeira sempre me atrai. No entanto, pensei, após alguns minutos poderíamos contar-lhe a verdade.

O que ocorreu foi que, quando chegamos na casa do sujeito, já estavam sua namorada, mãe, pai e até mesmo o avô. Todos me recepcionaram como "o estrangeiro", e foi aí que meu coração começou a apertar. Não havia mais o que fazer; em menos de meia hora, já haviam comprado-me uma Polar e preparado um jantar especial. Sem fome alguma, e duvidando do sabor interiorano, avisei o Ruy sobre nossos costumes vikings, de não jantar após o pôr-do-sol. Por algum motivo, eles acreditaram e eu fui visto com bons olhos.

Riam de tudo que eu falava, principalmente quando eu arriscava o português. Meu Deus, nem mesmo eu conhecia este meu lado intérprete. Mas não posso tirar o mérito do Ruy, que se manteve muito sério até o final, servindo de "tradutor". Passamos longas horas nessa enrolação familiar, inventando dez histórias por minuto. Por influência satânica, conseguimos manter a linha de raciocínio em perfeito estado, anexando cada pedaço das pequenas mentiras à grande farsa, o que foi tornando a história tão convincente que eu passei sinceramente a acreditar em mim mesmo. Eu, belga.

Meu falso sotaque nórdico atraiu a atenção daqueles atenciosos anfitriãos, e também de qualquer vizinho que passasse pela rua. Em questão de horas, a redondeza já sabia que um estrangeiro os visitava. Eu sabia que até o final do dia seguinte a cidade toda iria saber, então decidi que era hora de ir embora. Mas esqueci de contar.

"Vocês não querem ir numa festa de 15 anos com a gente? Eu ligo pra aniversariante! Traduz pra ele, Ruy!!!"

Fizeram-me falar com a aniversariante, que não só topou na hora como se excitou com a idéia. Conforme o Ruy "me dizia as palavras em português", fui repassando-as para a moça por telefone, e todo mundo achou a cena maravilhosa - foi uma das mais comentadas após. Só depois da ligação é que me dei conta da abusiva merda que estava por fazer. Pedi para falar com o Ruy. De alguma forma que não lembro, concordamos em ir, mas não sem um frio na barriga. Neste momento, o meu pensamento era "se eu sobreviver, vai ser A experiência. Se eu sobreviver.". Enquanto isso, a namorada do primo do Ruy me dizia aos sorrisos "tenho várias amigas pra te apresentar!". Foi quando meu passaporte começou a me interessar mais.


Fomos até a casa da Fátima novamente para nos aprontarmos. Enquanto eu tomava banho, ria sozinho pensando na festa que estava por vir. Assim que me vesti, um calafrio acompanhado de culpa atingiu minhas vértebras, mas era tarde demais: qualquer coisa que eu fizesse contra a nossa história seria bem pior. Já era noite; deveríamos ter parado logo cedo com a história, ou sequer começado! Até aquele momento, no entanto, por volta de 15 pessoas já estavam contando com a presença européia na festança. Era tudo ou nada.

Chegamos lá quase escoltados, mas pelo poder judiciário. Ao descermos, uma sensação de rockstar tomou meu peito. Todos que estavam à frente do saguão olharam para o carro que chegava, e algumas pessoas vieram nos recepcionar na frente - e não eram os recepcionistas; meu inglês, até então ileso, saía facilmente, como se fosse o inglês de um... belga. O fato de eu supostamente ser de Flandres, onde só se fala Neerlandês e francês, ajudaria no caso de alguém ser fluente. O que definitivamente não era o caso.

Todos por quem passava sorriam simpaticamente, murmurando ao fundo "é o gringo!", "o cara é da Bélgica!", entre outros. Até mesmo os velhinhos, parentes e amigos da moça. Quando eu cheguei no meio do salão com o Ruy, olhei ao meu redor e percebi que atraía muitos olhares interessados, e foi quando a ficha caiu: eu estava enganando por volta de 100 pessoas. Um frio gelou minhas entranhas, mas com alguns goles de cerveja, a culpa foi diminuindo até tornar-se nula. Os caras vinham falar comigo do nada, perguntando coisas em inglês básico, quase o inglês colegial, e eu respondia o mais pausadamente possível, para que me fizesse entender. O sotaque nórdico foi-se perdendo aos poucos, mas ninguém notou. Não demorou para que sentássemos numa mesinha e me oferecessem comida e as melhores bebidas da festa. Neguei quase tudo, ficando só com a Polar. Típico comportamento belga.

Os caras ficaram muito felizes com a presença suprema de um membro da UE. Quando notei que eles não falavam uma palavra sequer em qualquer idioma estrangeiro, passei ao plano B: falar um português arcaico. Abusivamente, utilizei o R forçado e verbos no infinitivo. Até eu mesmo teria me convencido, exceto pelas expressões gaudérias que, volta e meia, a cerveja liberava, como "Bah, really?!", "que trri, I like it!". Bem, acho que eles ignoraram isso;

Por várias vezes, o primo do Ruy - que é um sujeito muito legal, diga-se de passagem - me oferecia SKOL e POLAR, e ficava perguntando qual era qual para que eu adivinhasse. Por coincidência (...) eu acertei todas as vezes, mas fingia uma insegurança para que ele não notasse nada. Nessas alturas, eu mesmo já me sentia belga. Foi quando me apresentaram a tal "amiga", que supostamente seria a "melhor" da "festa". Era realmente uma jovem (bem jovem) atraente, apesar de tímida. Dizia-se que estudava inglês há vários anos, mas por algum motivo ela não entendia nada que eu falava. Isso me irritou à princípio, porque... bem, não ia funcionar se a gente não se comunicasse; então apelei para o plano C: português moderno. Abusivamente, reutilizei o R forçado e verbos semi-conjugados, com expressões trocadas (principalmente os adjetivos, gêneros e advérbios de negação), elaborando frases errôneas de propósito, como "eu gosto não este música", ao passo que a jovem ia me corrigindo. Em pouco tempo, estávamos conversando muito, e qualquer motivo era interessante para que lhe puxasse assunto, como uma guria meio... vulgar que passava por nós volta e meia, com seios impacientes implorando para respirar. Logo, percebi o quanto aqueles trajes me chamavam atenção e, consequentemente, ofendiam as outras meninas ali por volta. Consegui sentir o ar de indignação da jovem, ainda que esta fosse tão discreta quanto uma pulga numa manada de elefantes. Preparei as minhas melhores artimanhas de observação e joguei tudo de uma vez só com uma frase delicadamente formulada: "você gosta não daquela garota, do you?". Bastou o ponto de interrogação para que ela abrisse um sorriso. "Como tu percebeu?", "Eu sou observador". "Um ótimo observador", completou a moça. Ponto positivo, e mérito meu, de fato; foi uma das poucas vitórias honestas da noite e, portanto, a que mais me orgulhou. Pouco tempo passou para que o discurso fosse feito.

A música parou; as pessoas formaram um círculo ao redor da aniversariante (uma jovem muito simpática, confesso), e ela começou seu discurso. Agradeceu seus principais ascendentes um a um, e generalizou seus amigos, exceto... bem, para a minha surpresa, tive uma dedicação especial. "Queria agradecer também o meu amigo gringo, que veio de longe pra nos ver!", e todos me olharam sorrindo. Tive de fingir que não entendi, mas a vontade de rir só não foi maior do que a preocupação pela minha própria segurança. Diante daquelas cem pessoas, concluí: a história tinha ido longe demais.

Mas estava somente começando.

Após o discurso, cantamos parabens, tendo eu só aplaudido por questões óbvias, apesar de um bando ter se dedicado a ensinar-me a letra. Aquela história andava tão enrolada que, ao longo da noite, eu já mal entendia o português de fato. Fui até a jovem de novo por puro interesse, tendo ela me proposto o seguinte desafio: dançar pagode. "Damn, I can't do it", disse eu, porque de fato não sabia nem o lugar dos pés, mas ela insistiu em ensinar e, bem, não ia ser tão vergonhoso já que eu era estrangeiro. No entanto, todos adoraram vê-la me ensinando, e eu sequer precisei fingir que não sabia - eu de fato não fazia idéia do quão difícil era dançar aquela batucada. Quando tudo isso acabou, percebi que o ex-namorado dela estava irado, lá fora, conversando com o Ruy e analisando cada movimento belga que eu dava. Como um condor estrategista, fui lá para fora conversar com o sujeito assim que o Ruy saiu. Por mais uma intervenção satânica, o cara era o único que falava inglês quese fluente na festa.

- Hey, how are you doing man? - disse eu, sorridente, quebrando o gelo. O cara já não me odiava mais. Eu só sabia que ele era o ex porque o Ruy havia me contado anteriormente em segredo, mas ninguém sabia que eu estava ciente.
- Great, thanks, how about you?
- I'm ok.

Perguntei-lhe o que fazia lá fora, ele disse que estava triste. Eu não ousei perguntar por quê, afinal isso estragaria meus planos. Então perguntei algo sobre vídeo-games, não lembro bem como. Esse assunto rendeu, e ficamos conversando sobre vídeo-game até ele me interromper.

- Do you know that girl with a black dress? - perguntou se eu conhecia a "menina de vestido preto", que seria a sua ex. Como uma raposa de fogo, desconversei.
- Hm, black? Yeah, but my WII console is white, have you ever played WII? - voltei ao vídeo-game descaradamente. O cara sequer notou minha tática malígna, e voltou a falar sobre isso. Foi quando o Ruy voltou e quase atrapalhou meus planos, aquele bastardo.

- Hey Lucas, this guy is with a problem in his heart! - disse o Ruy que o cara estava com um problema no coração. Na mesma hora usei isso ao meu favor.
- Oh really? Are you sick? - perguntei se ele estava doente, com tom preocupado, e depois perguntei se era grave. Assim que ele disse "no", eu perguntei onde era o banheiro e ME MANDEI, companheiro. ME MANDEI.

Senti-me um criminoso quando me olhei no espelho com um sorriso de orgulho. Voltei à festa e comecei a trabalhar rápido antes que fosse tarde demais. Disse a ela que seu namorado estava nos olhando, e que ele tentou conversar comigo. Ela disse que não tinha namorado, que ele era passado e etc. Após várias cervejas, minha mente maliciosa me dominou e eu a disse que ele gostava dela, que talvez fosse melhor eles conversarem, mas caramba, eu não estava sendo sincero. É claro que não, eu não poderia ser sincero àquela noite. Ela começou a se interessar pelo meu comportamento fraterno e eu somei pontos atrás de pontos, como um leão cercando uma gazela, mas desta vez, EU era o leão (vide o post #1). Quando a convenci do pior, estávamos no terço final da festa, na parte de fora. Alguns casais e amigos nos cercavam para despistar, afinal, todo mundo queria ver essa cena histórica. Eu basicamente estava escoltado de novo. Não obstante, o bote predatório durou pouco, só dando tempo para que a jugular fosse arranhada. Em pouco tempo, o ex-namorado chegou até nós com uma cara de derrotado, e não ousou olhar nos meus olhos, mas nos dela. "Por que tu tá fazendo isso comigo?", e ela respondeu algo do tipo "Tu que fez isso comigo!", e eu só pude botar as mãos na cabeça e exclamar "oh my...", com um sorriso constrangido de quem fez algo errado. O primo do Ruy e mais alguns sujeitos AGARRARAM o cara à força, em "minha proteção", como se fosse necessário (o sujeito era magro como uma larva de mosquito). Mas o leitor sabe bem como funciona esse negócio de proteção nobre; comitatus, honra, sangue, lealdade... tudo pelo bem da Europa.

A tática do pretending to care for muito bem utilizada mais uma vez, e eu repetia em português-nórdico: "não querer confusão, não dever isto fazer again, não querer estragar festa, sorry". E me afastei da moça, que a essas alturas já estava internamente ferida. Suas amigas e amigos, incluindo o tio da jovem (namorado da aniversariante!) e o primo da mesma, todos eles estavam implorando para que eu não abandonasse o projeto. Mas é claro que minha estratégia visava ao futuro, e de fato isso tudo contribuiu para o final da festa, embora seja assunto para se tratar pessoalmente.

O sujeito foi embora com o árduo sabor da derrota medieval. Mal sabia ele que seu adversário era um viamonense chinelão, e não um nobre cavaleiro do Reino de Flandres. Bom, cada um usa as armas que tem.

Após as confusões, a paz foi restabelecida novamente, e três espertinhos resolveram tentar me sacanear. O primeiro, mandou eu repetir que eu era gay, mas eu lhe respondi à altura que gay era ele, e quase puxei uma nova briga, afinal minha honra belga havia sido ferida; porém, o cara se desculpou envergonhado. Depois, um sujeito meio estranho tentou falar algo em alemão, alegando que era "eu gosto de homem", ou algo do tipo. No entanto, meus conhecimentos germânicos básicos fizeram-me perceber que o cara não estava dizendo bulhufas. Eu o corrigi na frente de todos, falando "ah, você não saber falar alemão!", e saí. O coitado virou alvo das risadas de TODOS ali por volta, e mais uma vez saí vitorioso. Eu nunca havia tido tanta sorte em uma única noite. Por fim, um terceiro cara tentou me sacanear de alguma forma que não lembro, além de me chamar de Felipe Massa, e o fiz pagar por isso na frente de sua namorada, dizendo que ele não precisava se aparecer. O cara ficou constrangido demais, e todos por volta riram novamente. Após, vários deles me convidaram para ir à Boate de Encruzilhada, e acabei indo quando a jovem foi embora, mas aquilo lá era um lixo. Em pouco tempo, o funk me obrigou a voltar para a doce chácara com as únicas pessoas da cidade que sabiam minha verdadeira nacionalidade. Deitei-me com a certeza de que jamais havia participado de alguma experiência semelhante. Tampouco o Ruy. Orgulhamo-nos de nossa atuação e dormimos um pouco menos culpados.

Até que o dia amanheceu.

A preguiça bateu, e não hei de contar-lhes com detalhes o que ocorreu na tarde seguinte, quando fomos novamente à casa do primo do Ruy e mais uma vez tive de atuar. Estava cansado já; no mais, a jovem ex foi lá se despedir de mim. Foi um momento interessante, porque a ânsia de lhe contar a verdade invadiu meu peito. Mas, conforme havíamos combinado, se eu contasse, o Ruy iria passar por apuros, e isto não seria leal. Ele volta com uma dada frequência àquela cidade e eu não queria fazê-lo sofrer as consequências de uma brincadeira que tomou proporções bíblicas.

E aqui vai uma lição para os meus netinhos:

"A mentira tem pernas curtas, mas nada que um sapato não resolva."