domingo, 16 de janeiro de 2011

Uma Noite de Extrema Ação

Às 21h do dia 14 de janeiro de 2011, eu e Max combinamos de sair; pois, passamos a organizar tudo. Combinei de estar lá na sua casa às 23h, e então sentei em frente ao piano e lá fiquei até as 23h30min ou algo próximo a isso. Depois, tomei um banho e, resumindo, cheguei bem depois da meia-noite no seu apartamento perimetral de Porto Alegre.
Subi. Tomei duas cápsulas de uma droga estimulante, com o propósito de anular meu sono. Em poucos minutos, já estava bem disposto. Tomei alguns goles d'água e decidimos partir. Chegando no térreo, Max lembrou-se de algum objeto que faltava, do qual ainda não tenho conhecimento, tendo ele subido novamente para buscar. Enquanto isso, conversei com o porteiro, vulgo "Dentinho" - alcunha facilmente justificável após uma breve conversa com o magro trabalhador noturno. E foi o que fiz: enquanto Max demorava-se à procura de sei la o quê, tentei fazer uma breve análise psicológica da experiência daquele porteiro que, conquanto leigo, sabia demasiado acerca da estrutura política e econômica da cidade. Tão logo me convencia de seu ponto de vista deturpado, o outro voltava, e íamos em direção a um porão que há em um beco lá pelas redondezas. Chegamos lá e algo estranho já se nos passava: o segurança nos aconselhou a não entrar. Que diabos de lugar é esse no qual o segurança orienta os fregueses a não entrar? Pois é; mas meu instinto eloquente nos criou uma oportunidade, tendo o segurança dito: "então pergunta pra aquela moça se tu pode entrar.". A moça em questão era uma figura moderna, com cabelos curtos e arrepiados com algum produto muito resistente, piercings espalhados ao longo de toda a sua face, tatuagens insistentes habitando seus braços e pernas - o que se fazia visível perante os trajes curtos e nada sensuais que a simpática jovem vestia. Perguntei-me o que ela faz ali, mas não era hora de questionar as regras do jogo, e sim de traçar uma estratégia para vencê-lo; e o fiz.
- O nosso amigo segurança me disse que tu é a autoridade máxima desse lugar. Por isso vim te pedir licença para entrar.
- Depende.
- De?
- Do teu time. Gremista ou colorado?
Eu odeio esse tipo de condição por tantos motivos; primeiro, ter um time não determina o seu caráter - no máximo, a ausência dele. Segundo, que diferença faz a porcaria do nome da instituição que arrecada a grana que o povo leigo oferece a onze funcionários, cujo ofício é chutar um pedaço de borracha? Frase longa, mas verdadeira. E, por último, detesto desafios que não envolvam o intelecto - única diferença entre o homem e o orangotango. Pois bem; ao passo que me remoía por dentro em torno destes postulados, fui analisando seu rosto na tentativa fúnebre de adivinhar para qual time aquela aberraçãozinha torcia. Sem sucesso, parti para o plano B.
- Eu sou neutro;
Ela parou por uns segundos, com o mesmo delay de um cachorro ao ouvir um barulho que nunca havia escutado antes. E então decidiu-se por...
- Ah, neutro? Espertinho... tu é gremista!
- Eu não sou...
- Colorado?
- Neutro...
- Haha, então tu é corinthiano!
- Não.
- Documento?
(Mostrei-lho)
- Viu? Não disse? Tem até cara de corinthiano!
- Eu já disse que sou neutro... - tentei manter a simpatia facial.
- Hmm... tá bom, pode entrar então, senhor "neutro".
- Obrigado, senhora "porteira".

Felizmente ela não registrou, mas o declínio de autoridade foi o primeiro sarcasmo da noite. E entrei. Max veio logo atrás, provavelmente desfrutando de minha artilharia.
A festa estava murcha. Havia um número razoável de pessoas, mas a maioria era composta de homens e emos. As poucas corpusculosas de Barr concentravam-se ao redor do balcão no andar de baixo. É para lá que nos dirigimos. Pedimos uma cerveja e bebemo-la tão rápido que, se eu regurgitasse, a teria de volta no mesmo sabor e na mesma temperatura. Ao nosso lado, a primeira cena freak: duas meninas altamente pegáveis beijando-se. Puxei meu celular na mesma hora e posicionei sua câmera, tendo registrado o momento com uma fotografia. No mesmo momento, uma doentia amiga do casal pôs-se contra meu natural e saudável ato.
- Ô meu, tu é um $#!@%*, fica tirando foto das mina meu, pra que isso?
Confesso que fiquei um tanto surpreso pela reação exagerada daquele verme.
- Peraí... quer dizer então que duas gurias se agarram enlouquecidamente na frente do balcão de um bar lotado, e a amiga delas quer privacidade?
Ela pensou no que cospir de volta, enquanto as duas ainda se agarravam sem sequer ouvir uma só palavra; a coisa começou a ficar mais séria ao longo do tempo, tendo uma agarrado o cabelo da outra, deliciando-se numa cena promíscua e pecaminosa.
- Mas é a imagem delas, meu! Deixa de ser #$@#$!
- Olha, pelo jeito elas não estão se importando muito... então eu acho que tu tá é com inveja, porque convenhamos: eu não tiraria foto de ti nem se tu estivesse beijando o pênis de um porco...
Os próprios amigos dela riram, junto de mim e de Max, que acompanhava a cena com muita paciência. Ela tentou balbuciar algumas palavras de ofensa por trás do seu cabelo curto e lambido a la mendigo emo, mas já era tarde. Afastaram-se todos, e pedi mais uma cerveja para contemplar a segunda ironia da noite.

Meio tonto, saímos ambos dali em busca de nada. Ao longo da noite, encontramos diversas personalidades femininas, dentre elas até mesmo duas viamonenses. E mais de uma hora depois, avistamos mais duas moças sentadas e apagadas, encostando-se uma na outra. Era-me óbvio seu estado volátil e alcoólico. Analisamos por mais alguns minutos, e então uma delas começou a cospir no chão, como se faz na véspera do vômito. Instintivamente, sentei-me ao lado desta e aconselhei-a a ir ao banheiro. Ela não conseguiu responder; (isso vos lembra alguma coisa? http://tenhamuitocuidado.blogspot.com/2010/04/aventuras-no-porao.html )
Fiquei mais um tempo sem saber como agir, enquanto Max me observava em pé, a alguns metros, claramente reprovando a perda de tempo. Max é um sujeito muito durão.
Não demorou para que surgissem três outros caras, estacionando seus perfis fracassados em frente ao sofá onde nos reclinávamos, eu e as meninas. Com um sorriso tosco, queriam parecer malandros ao tentar acordá-las com palavras grossas e ofensivas, o que me deixou contrariado. Um deles chegou a me olhar, julgando que não me importaria; este mesmo cara ousou tocar nas pernas descobertas da outra menina, que estava inconsciente, e então levantei-me, afastei-o pelo ombro e estendi o dedo indicador na sua face:
- Tira a mão, meu!
Ele ficou surpreso, mas logo recompôs sua máscara de falsa coragem e rebateu:
- E seu quiser botar a mão, tu vai fazer o quê?
- Tenta de novo e tu vai descobrir!
O cara chegou a tentar alcançar a coxa direita da menina, mas antes que completasse, empurrei-o com os dois braços, tendo ele caído de costas no chão. Nisso, os dois amigos vieram contra mim, tendo eu acertado um soco no olho de um deles, que também caíra, enquanto o terceiro agarrara meus braços. Eu teria sido espancado, não fosse o Max agarrar o pescoço desse, permitindo que eu me soltasse. O primeiro cara estava já levantando, e, mais por prevenção do que por defesa, chutei-o no peito, tendo rolado por mais alguns metros. Nesse momento, a multidão já estava formada, e a cena de combate circulada era composta por um sofá, duas meninas dormindo, dois sujeitos no chão, um agarrando outro pelo pescoço e eu, contemplando tudo ao meu redor com o sangue mais quente que água de chimarrão.
Max me olhava e gritava algo, provavelmente querendo que eu soqueasse o cara enquanto ele o agarrava, mas eu disse "SOLTA ELE, MEU, SOLTA" e o Max soltou; o cara caiu no chão e logo se lavantou, vindo em minha direção com um olhar indeciso de quem quer recompor seu orgulho desintegrado diante de uma multidão. Ele era mais alto que eu, apesar de mais magro, e parecia tão pálido quanto um copo de leite; esperei-o por alguns segundos, mas antes de ele se aproximar muito, fui correndo em sua direção. Lembro-me de acertar ainda mais um golpe, e de ter recebido outro; Max então despejou inúmeros chutes no rapaz, que caiu novamente, e a luta seguiu no chão. Não acompanhei a cena por muito tempo, porque um dos outros dois me acertara a nuca por trás, tendo eu dado alguns passos para frente, meio tonto. Antes de me virar, deu-me um chute nas costelas esquerdas, e então caí. Virei-me de imediato - a dor já não era prioridade - e o sujeito seguiu chutando-me enquanto eu estava no chão. Agarrei seu pé de apoio e rolei por cima com toda a minha força, tendo ele caído nas grades que separavam um ambiente do outro mais acima. Levantei com uma raiva que anulava meu cansaço absoluto. Ele estava reclinado na grade-parede, e eu desferi três ou quatro socos divididos entre seu peito e seu rosto. Destes, ele não vai se esquecer tão cedo. Não lembro que fim levou esse, porque o segurança já me agarrava por trás com uma agressividade abusiva. Fui levado como um criminoso para a saída, e lá me abandonaram sem muita preocupação posterior. Logo então trouxeram o Max, o seu adversário e o primeiro marginal que abusava da menina. O último cara, com quem tive mais contato, não aparecia nunca. Três seguranças faziam um discurso forte e periférico, mas não ouvi uma palavra sequer. Uma mulher ofegante chegou a pronunciar a palavra "ambulância", mas de fato não dei muita bola. Não me arrependia de ter feito o que achava mais justo, e mais: deveriam ter apanhado o triplo. Na hora, sequer fazia idéia da dimensão heróica dos fatos: eu não brigava desde a sexta série. Porém, alguns minutos depois, quando decidimos sair dali antes de nova confusão, fomos (meio cambaleantes, é bem verdade) nos afastando, e ao chegarmos a algumas quadras de lá, na esquina da Alberto Bins, paramos um pouco, respirando ofegantes. Então sorrimos de prazer.
É difícil entender a sensação que uma ação extrema desemboca em seu organismo. É como uma explosão de neurotransmissores agindo ao mesmo tempo, uma absurda dose de adrenalina seguida de um orgasmo contínuo e doloroso. As primeiras dores começaram a surgir; por sorte meu rosto não foi ferido... mas minhas costas estavam completamente debilitadas, dificultando mesmo a respiração. Ao fundo, da Independência, ouvíamos a sirene da ambulância.
- Cara... - disse o Max - o que foi que a gente fez...
Rimos de novo. Três contra dois é uma disputa tendenciosa, na qual ninguém apostaria na minoria. E o melhor: o motivo era nobre e moral, ao contrário da maioria das brigas que ocorrem por aí, muitas vezes acarretando mortes gratuitas. E por falar nisso...
Da Cel. Vicente, ouvimos alguns berros do tipo "eles foram por ali!". Nos olhamos; não era possível que isso não teria acabado... os caras deveriam estar mais machucados que nós. Olhamos lá da esquina, e o que vimos desta vez nos apavorou mais do que qualquer outra coisa. Eram quatro sujeitos: os dois que saíram com a gente e mais outros dois caras, aparentemente mais jovens, que não participaram de nada lá dentro.
Nos olhamos apreensivos; era preciso tomar uma atitude impulsiva... pois o tempo era curto.
- Cara, a gente corre ou enfrenta? - questionou-me Max a pergunta que justamente passava pela minha cabeça.
- Tá louco? Eles são quatro agora... não tem como...
- Cara, de qualquer forma eles vão correr mais...
Não deu tempo de concordar ou discordar. O primeiro sujeito (o que passara a mão nas coxas da menina logo no início) dobrava a esquina, e o Max prontamente já lhe acertava um joelhaço na genitália. Este não vimos mais. O segundo, logo depois, já tinha percebido que estávamos ali, mas não me tinha visto, tendo-me aproveitado disso para soquear seu queixo com a força que me restava. Os outros dois foram no Max, e eu me vi obrigado a atacar pelas costas de um deles, chutando-lhe as costelas como me foi feito antes. Este era com quem o Max havia lutado no chão da casa noturna, e mais uma vez estava no chão. O outro (um dos estranhos) seguiu lutando com o Max, e aquele cujo queixo eu recém havia acertado me dera um golpe (não sei bem se um chute ou um soco) nas costas novamente, mais acima. Não cheguei a cair, mas antes mesmo de me virar, o sujeito desconhecido me golpeou com uma "gravata", tendo quase me imobilizado; ele certamente me teria espancado naquelas condições, mas preferiu estupidamente tentar me derrubar. Agarrei-o e fomos ambos para o chão, mas logo me levantei. Max também estava no chão, parado, quando notei o que estava acontecendo;
O sujeito estranho que lutava com ele havia tirado uma faca.

Eu pronunciei as primeiras palavras desde o início de tudo isso, mas não as lembro bem; tentei convencê-lo a desistir da faca, que ninguém precisava se machucar mais do que isso, e que não estávamos armados. Aos berros, o sujeito nos mandava calar a boca, e o outro, já levantado, ficou de pé ao seu lado, e também tentou convencê-lo a largar a faca, alegando que já tinham nos dominado. O cara estava totalmente descontrolado, dizendo que ia nos furar, porque a gente apagou o amigo dele. Imagino que o cara que não saíra com a gente da casa estava inconsciente... mas tenho certeza que não foi fatal. A cena agora era totalmente o inverso da outra: dois caras no chão, eu e o Max encurralados na parece de um prédio na esquina superior da Alberto Bins com a Cel. Vicente, um sujeito ensanguentado de pé ao lado de outro maníaco com uma faca em punho, apontando para a nossa cara. O outro ainda tentava convencê-lo, mas o cara estava decidido por nos esfaquear... provavelmente temendo a repercussão do ataque, o outro estranho segurou seu braço, e foi essa fração de segundo que me fez agir impulsivamente, tendo acertado o nariz do sujeito com a dobra unida dos meus quatro dedos da mão direita. O cara sangrou na hora, caindo nos braços do outro, e o Max começou a chutar seu peito com muita força, tendo ele largado a faca e caído com força no chão, provavelmente batendo a cabeça na calçada. O outro, nessa hora, decidiu por correr, atravessando a rua e subindo em direção à Santa Casa, enquanto eu chutei a faca do vagabundo para o meio da rua e também corremos na direção contrária. Ensanguentados, trêmulos e suando mais que um retirante camelô, pegamos um táxi até a casa do Max.

Quando chegamos, ele botou a mão no bolso procurando as chaves, mas o porteiro abriu calmamente, como quem gozara da paz noturna no canto seguro do lar burguês.

Entramos no elevador e não apertamos nenhum botão. Ainda estávamos em estado de choque.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

As Imperfeições

"O segredo da satisfação é admirar as imperfeições". Essa brilhante filosofia acerca da felicidade conjugal, ouvi certa vez de um velho sábio, durante minha adolescência. A ironia é que ele era cego. Como se escutara nossos pensamentos, já antecipava: "Ah, meu filho; há muitas coisas que não precisam de olhos pra serem vistas".

Esse senhor morava numa casinha de madeira, afastada da cidade. Cheguei lá uma vez durante um passeio de bicicleta, pedindo por um copo d'água. Ele me recebera com muito carinho, e logo começamos a conversar. Percebi que era muito solitário, conquanto dissesse ter esposa. Perguntou-me se era compromissado também, então lhe contei sobre minha extrema exigência em se tratando do sexo oposto... coisa de adolescente idealista. Foi quando me apresentara sua filosofia, à qual aderi no ato. Daquele momento em diante, o velho ceguinho tornou-se meu mestre - e eu deveria pôr em prática seu ensinamento. Pediu, então, para que eu voltasse lá e lhe contasse os resultados.


Nos dias seguintes, conheci algumas meninas... diferentes. Optei justamente pelas que sequer notava nos dias anteriores, como a jovem magérrima que sempre me observava nas aulas de canto. Convidei-a para comer algo após a aula, e ela topou sem ouvir a proposta. Levei-a a uma lancheria mesmo - não queria transcender as etapas de aprendizado. O garçom chegou e eu pedi um sanduíche de frango, enquanto ela, calada, apenas me observava com um sorriso seco nos lábios. "E a senhora?", disse o homem, fazendo-a acordar. "Não, obrigada, não quero nada.". "Nem uma água?", retrucou o rapaz; "não, nem uma água".
- Você não tá com fome? Já é quase meio-dia...
- Não...
- Podia ter me falado... iríamos a outro lugar...
- Não, tá tudo bem, eu só vim te acompanhar mesmo.
- Estranho, não ter fome ao meio dia...
- Eu não costumo ter fome...
- Como assim?
- Eu não sinto fome... comida me dá vontade de vomitar.
Eu tive sorte de meu sanduíche não ter chegado ainda, pois teria me engasgado.
- Minha mãe diz que tenho anorexia, mas não sei se é verdade - continuou a estranha jovem.
- Anorexia? Meu Deus! Você não se trata?
- Não quero. Eles vão mandar eu comer, tenho certeza...
- Mas você tem que comer! Senão vai morrer!
- Vou morrer é se comer essas coisas que vocês injerem... gordura, óleo, açúcar, carne, ugh...
Nesta hora meu sanduíche chegava. Eu não conseguia imaginar como alguém poderia negar aquela maravilha culinária, mas talvez devesse ser mais cauteloso diante de minhas hipóteses.
- Vamos, prova um pedaço...
- Ah, não, obrigada, mesmo...
- Vamos, por favor... só um pedacinho...
- Não quero mesmo, não posso comer isso...
- Ah, vamos lá... por mim, vai? Só um pedacinho!
- Ain... tá bom...
Senti-me muito poderoso ao convencer aquela jovem doentia a comer algo. Ela abusou da cautela ao morder um mísero pedaço do meu sanduíche, sequer atingindo o frango. Mastigou com muita calma e sob expressões de nojo absoluto. De repente, vi-a esverdeando; cheguei a pensar que era frescura, mas então...
- TO PASSANDO MA....
Seu vômito completou a palavra sobre o meu formoso sanduíche de frango, quase intocável. Era um vômito aguado, pouco esverdeado, pouco amarelado... creio que havia 90% de bile naquela mistura homogênea. Senti uma ânsia quase incontrolável ao ver a lastimável cena junto de todos da lancheria, inclusive o garçom, que parara com sua bandeja no meio da lancheria, olhando incrédulo para a moça e seu vômito anoréxico. Levantei e saí sem dizer uma palavra.
Uma semana após, conformei-me com a idéia de ter sido apenas uma casualidade, uma infortúnia, uma má escolha. Saí com uma segunda moça, da qual todos tinham receio no colégio por seu histórico agressivo. Tirando tal comportamento, não era lá de se jogar fora. Sem levar em conta os comentários, e apostando na filosofia do velho cego, convidei-a sem medo algum para irmos ao cinema, o que topou na hora e sem qualquer desafeto. E fomos naquela mesma tarde assistir ao badalado "O Sexto Sentido". Senti, confesso, um certo arrepio desde as primeiras partes, mas o clima fora quebrado logo na cena da barraca, quando ele acende a luz e nota uma fantasminha vomitando ao seu lado. Quando finalmente consegue sair, dirige-se lentamente até a barraca, sob a qual a jovem ainda deveria estar. Neste momento, a doida ao meu lado descontrola-se e berra na sala à toda garganta: "SAI DAÍ, SUA VACA! APARECE SE TU É BEM MULHER!"
As vaias e os risos misturaram-se ao clima de suspense da cena. Foi difícil acreditar que aquilo estava acontecendo. Apavorado, evitei olhar para sua face, o que, de fato, não foi uma boa escolha: "E VOCÊ, SEU FRESCO! TÁ COM MEDINHO??? POR QUE SAIU DE CASA, ENTÃO? POR QUE NÃO FICOU COM A MAMÃE EMBAIXO DO COBERTOR, HEIN, FRUTINHA???!!!

As vaias aumentaram e as risadas direcionaram-se para mim, assim como todos os olhares ao redor. Levantei-me e saí, sem dizer uma palavra, mas com a aparência de uma beringela apodrecida. Seguindo seu conselho, cheguei em casa e enfiei-me debaixo do cobertor.
Quando acordei, as paredes da garagem estavam pichadas de meu nome com uma caveira ao lado, e minha bicicleta estava completamente destruída na calçada.

Eu fracassei. Era evidente que não estava preparado para seguir as palavras do velho e sábio cego. "É certo que vou ser infeliz", concluía. No entanto, era preciso cumprir minha palavra, e voltei lá na tarde seguinte, com minha bicicleta deformada. Cabisbaixo, cumprimentei-o, tendo-me oferecido uma xícara de chá. "Não, obrigado", respondi-lhe, puxando uma cadeira e sentando-me em frente à casa próximo do velho, que, por trás de seus óculos escuros, parecia enxergar mais do que todo mundo. Antes de qualquer palavra minha a respeito do motivo que me trouxera lá, contou-me uma história.
- Quando eu tinha a sua idade, meu filho... ah, eu era muito questionador. Não deixava jamais me dizerem o que fazer sem antes saber por que o deveria, nem respondia a nenhuma pergunta que me não fosse conveniente... até que um dia, um belo dia - dizia com expressões faciais que acompanhavam o ritmo do relato -, me chamaram do exército. Eu tinha só dezoito anos! - e tomou um gole do seu chá amarelado. Quando lá cheguei, um tal capitão me recebeu, e de pronto já me mandou tirar os óculos. Eu não fiz nada. Ele repetiu a ordem e eu nem dei bola. Indignado, mandou chamar um tal tenente para que me convencesse, pois não tinha paciência com desordeiros, e iria acabar usando de força. O tenente se aproximou, senti, e resolveu partir para a diplomacia: "por que você usa esses óculos, menino?", "pelo mesmo motivo que você usa ceroulas", respondi convicto. Não esperava que ele compreendesse, e de fato não foi bem assim que as coisas terminaram: recebi um tapa no ouvido direito que até hoje me dói - disse botando a mão no ouvido esquerdo -, e passei os dias seguintes limpando o banheiro dos soldados. Todos me caçoavam. Na hora do banho, roubavam meu sabão, e eu passava horas procurando-o pelo chão escorregadio embaixo da água gélida e mal cheirosa que nos era despejada sobre a cabeça. Maus bocados passei, meu jovem... - disse tomando outro gole. Engasgou-se e cospiu para bem perto de mim, o que me fez afastar um pouco a cadeira. Continuou: Eu já nem lembro quanto tempo fiquei naquela situação, meu filho, mas vou lhe dizer: foi lá que aprendi tudo que sei de importante hoje. Não lhe digo que foram os milicos que me ensinaram, ah não! Foi a própria vida, a situação armarga em que me encontrava. Antes de limpar o banheiro imundo, pensava no quão límpido ficaria após meu serviço. Antes de comer a galinha crua, pensava no bem que sua carne me faria e tudo se acertava. Quando saí de lá, já tinham se passado tantos meses, talvez anos! E eu precisava me relacionar, entender mais sobre meu corpo. Eu poderia ter perdido tempo e experiência escolhendo a dedo como você, mas então lembrava do fétido banheiro dos soldados, do banho gelado sem sabão, da galinha sangrenta, do tapa no ouvido... foi assim que cheguei a essa conclusão, meu jovem.

Eu segurei as lágrimas, lembro, olhando para cima, como se fizesse alguma diferença. Ele sorriu, como se estivesse enxergando tudo. O clima de emoção fora quebrado com a chegada de uma mulher loira, com um corpo semi-escultural e um andar provocante. O velho já se antecipou: "minha esposa... Oi, minha velha!", e a jovem moça respondeu "Olá meu bem..." e, percebendo minha presença: "oi querido! Sinta-se à vontade!", disse, entrando na casa. Meus olhos não podiam acreditar no que viam. Deixando uma sacola sobre a mesa, dirigiu-se ao banheiro, ao passo que ainda lhe acompanhava com a visão. Com a porta aberta, vi-a de costas levantando a tábua da patente, e, para o meu absoluto desespero, começou a urinar de pé.

O velho, como se enxergasse tudo, já me lia o pensamento:
- As imperfeições, meu jovem! As imperfeições! - dissera-me com um riso espaçoso nos lábios murchos.
De fato, há muitas coisas que não precisam de olhos para serem vistas.

domingo, 2 de janeiro de 2011

Para Los Camaradas

 De fato este foi o maior hiato da história deste blog, e cá estou eu após quase um mês de silêncio contorcido, para dizer-lhes que meu mês foi legal e ilegal, por motivos aleatórios, os quais não discutirei aqui por pura preguiça.

Ontem, porém, foi meu último dia em Garopaba, junto do Alemão e de sua irmã Fran, além de várias pessoas queridas, como a Liliane, o Rafael, até o Lucas (o gigantesco), pela primeira vez não acompanhado do Davi. Minha família também recheou a residência receptiva da praia mais contraditória do Estado Catarinense. Digo isso pelo contraste entre a beleza do litoral e a ausência de infraestrutura na construção civil de Garopaba, que definitivamente não está pronta para receber tanto turista.
Notamos isso pela negligência (ou extrema confiança) por parte dos nativos, que emprestaram caiaques e um colete por R$ 10,00, tempo ilimitado, para dois estranhos, que, por sorte, eram eu e o Alemão. Fizemos uma volta canibal pela baía, encontramos praias escondidas após as pedras, lugares quase desabitados... e me perguntei o que impedia alguém de consumir aqueles barquinhos de fibra. Enquanto conversávamos sobre isso (e sobre milhares de outras besteiras), atravessamos novamente o litoral, cortando-o de uma ponta a outra, e depois retornando ao destino. Isso nos tirou quase três horas, muito embora tenhamos pagado por uma. Nada foi cobrado a mais. Após entregarmos os remos, podres de cansados, fomos para a estação de Sandboard, e lá, mais uma vez: a gigantesca paisagem natural paradisíaca contrastava com a falta de infraestrutura: apesar de as pranchas serem bem feitas, a escada para nos levar ao alto da montanha de areia estava em situação precária, além de, ao anoitecer, as luzes serem insuficientes para a prática do esporte. Tampouco notaram quando devolvi a prancha. Mas nada disso justifica a queda espetacular do nosso teatral Alemão, que (dizem) foi dono de uma manobra raríssima, envolvendo sucessivos mortais de 360º sem a prancha, provando com maestria sua intimidade com esportes radicais. Chegou lá embaixo com a cara ainda mais pálida do que o comum, devido ao susto e à areia branca e fina que cobria o seu corpo do dedão até os últimos fios de cabelo. Provavelmente por isso, não arriscou muitas vezes mais, ao contrário de mim, que, bem ou mal, acabei pegando o jeito, muito menos por experiência do que pelo incentivo de ver o alemãozinho se ferrando.

Esse cara foi o ícone da minha viagem. Logo na ida, já me causou uma cólera risonha ao olhar para uma imensa, verde e parelha plantação de arroz (típica de todo o estado) e dizer "olha lá! Plantação de salsa!"...
Ele jura até agora que foi uma brincadeira, e isso é uma das partes mais engraçadas da história; porém, não estamos aqui tomando nenhum partido ou fazendo qualquer julgamento prévio.
Mentira.

Meu doce cumpadre alemão também foi dono de inúmeras danças sensuais durante os poucos dias em que esteve presente, alegrando a todos ao seu redor, propositalmente ou não. De fato, é um sujeito que faz falta.



E, por querer ou sem querer, sempre morará no meu e nos nossos corações.