quarta-feira, 22 de setembro de 2010

A Reforma Infernal


Antes de graduar-se em medicina, direito, filosofia, letras e economia, meu velho companheiro Alberto Pastelina chegou a cursar Teologia por cinco semestres. Surpresa foi, contudo, o fato de ter sido expulso após a apresentação de um trabalho, em forma de teatro, cujo roteiro os apresento abaixo – não sem sua autorização prévia. Malgrado tenha lhe ocasionado tal punição, seu sucesso seria evidente em casas noturnas e, por que não, no programa Zorra Total.

Na serenidade do Divino Escritório, abre-se a porta às pressas:
- Senhor, Senhor!
- Mas que... o que é isso, Gabi? Entras assim, sem bater?
- Perdão, mas é urgente! O Pedrinho tá com problemas no Hall, parece uma rebelião!
- Outra? Caramba, está virando moda.
O Divino levanta de sua poltrona e segue, nem lento, nem apressado, até o Hall de entrada. Ao chegar, encontra pessoas debruçando-se no gigantesco portão de ferro pelo lado de fora, escandalizados e, de certa forma, vandalizando o ambiente.
- O que está acontecendo por aqui, Pedrinho?
- Bah, eu não agüento mais. Esses três aí tão pedindo pra descer... um diz que não morreu, o outro que morreu de leve e o último que já morreu várias vezes na vida e nunca veio parar aqui.
- Eles se conhecem?
- Sim, são tudo crente.
- Crente o caramba! Eu sou devoto! DEVOTO! – urrava de trás do portão um dos recém chegados.
O Divino olhou para o rebelde, que se calou.
- Deixe-o entrar.
- Mas senhor...
- Pedro;
- Sim, Divino.
A porta se abre; os três sujeitos ficam imóveis. O Divino ordena que o “devoto” se apresente, e este, receoso, dá um passo para frente.
- Chegue mais perto. Mais um pouco. Mais, mais...
O sujeito, de cabeça baixa, aproxima-se até dois metros do Divino, que se pronuncia.
- Você está morto?
- Não, senhor.
- OK. Pedro, mande-o de volta.
- Como assim, Senhor?
- Mande-o para a Etiópia. Reencarne-o numa prostituta aidética e não o deixe morrer até que o Egito vença uma copa.
- Mas senhor!
- Pedro!
- Sim senhor.
O infeliz, aos berros inconformados, é obrigado a descer a Escadaria da Luz. Os dois restantes jogaram-se no chão de instantâneo, como se simulassem a própria morte. O Divino olhou para Pedro sob seus óculos circulares e retornou ao escritório.
Sentado na sua poltrona novamente, chegou a fechar os olhos por alguns minutos; não obstante, o insistente telefone o alerta.
- Hã, Gabinete Divino, em que posso ajudar?
- Senhor, aqui é Davi, Secretário de Guerras. Estamos com um probleminha no...
- Oriente Médio?
- Isso mesmo, Senhor, mais especificamente em Dubai. Tem uma multidão de vagabundos, todos trajados de vermelho. Estão saqueando a cidade, totalmente descontrolados!
- Ora, isso é peixe pequeno, Davi. Lança um “pára-te quieto” aí que resolve.
- Mas Senhor, o que eu faço?
- Sei lá, taca uma banana, lança uma pedra, te vira!
Desligado o telefone, este volta a tocar.
- Que é, Davi?
- Não Senhor, aqui é do Ministério Interativo. Ligação do Limbo para o Senhor, posso passar? – disse uma voz feminina enjoada.
- Ah, sim, Madalena, por favor. – e a música de espera (Ave Maria) passa a ser tocada ao som das harpas angelicais.
- ALÔ!
- Pois não.
- Ah, fazido! Não reconhece a voz, agora?
- Fala, Lucy.
- É o seguinte, ô “iluminado”. Tô cansado desses sujeitos que você manda pra cá sem avisar. Já bastava Barrabás, Nero, Calígula, Hitler, Enéias...  até a Dercy Gonçalves...
- Ela que quis ir, eu bem que tentei...
- Tá, tá... mas por falar em Hitler, ele quer ter um papo contigo, lá vai. – Antes que o Divino se posicionasse, uma voz levemente aguda e determinada, com sotaque ariano-farofa, pôs-se ao telefone:
- Hallô!
- Fala...
- No entende porque que tem que estar aqui, uma vez. Wenn Mussolini está aí, se fez ele muita mais coiso que eu!
- Mussolini não está aqui, Adolfo, ele foi reencarnado em um porco napolitano há anos. E ele não fez mais que você, não senhor...
- Ora Scheisen! Como ousar! Ser eu não tão má assim como diz aí fora, tava só brincando mas non comprende, uma vez!
- O seu julgamento já foi feito, Adolfo. Sinto muito.
- Ach So Scheisen! Ich como Führer declarar GUERRA ao senhor!
- Ah, Adolfo... não me amola... passa pro teu dono aí.
- Dono? DONO? – e o telefone é arrancado de Hitler, que segue gritando atrás, cada vez mais afastado.
- Demo?
- Sim, peguei do Fritz aqui... é de doer o ouvido esse louco cantando toda manhã... “um barril de chopp, é muito pouco pra nós!”. Olha aqui, branquelo: ou tu trata de aumentar a burocracia aí, ou vou começar a mandar uns “gente boa” aí pra cima também, morou?
- Tá, rapaz, eu vou trabalhar nisso... Cara chato, viu.
O Divino desliga o telefone e já o pega novamente, discando o ramal 667.
- Departamento de Incêndios e Desastres Naturais, em que posso ajudar?
- Oh, me enganei. Qual é o número da DAC?
- 666, Senhor.
- Obrigado – diz, e disca o número.
- Departamento Amigos do Capeta, em que posso ajudar?
- Ô Raulzito, é o Divino aqui de cima.
- ÔÔ meu pai! A que devo a honra?
- Eu quero uma relação dos próximos que vão pro Limbo antes de sexta-feira... parece que o chefe lá anda meio contrariado...
- Ah... vou fazer isso agora mesmo e te envio por um moleque, ok?
- Please malandro.
- Já é, chefia. Me dá dois minuto aí.
De repente, bate à porta o possível moleque. Divino grita “Tá aberta”, e entra um sujeito esfarrapado, totalmente sujo e mal cuidado.
- Pai...
- Quê? Jesus? Ah, filho, já disse pra você trocar essas roupas!
- Ah não, não dá, véio... se pá eu vou morrer nessa beca...
- Hum... manda então.
- O tio Raul mandou entregar pro senhor esses esquema, mó loucão ele, né não?
- Filho, você não precisa ficar fazendo favor pra todo mundo... já te falei que isso tá errado.
- Ah qual é, meu... to pela paz...
- Sei. Tá, me passa logo isso.
Jesus passa um pergaminho com milhares de nomes anotados à tinta.
- Paizão, descola uma prata aí pro teu filhote...
- Quê? Qual é, Jesus? Já tá crescidinho pra ficar me explorando...
- Pôôô, me vaiou... eu também sou filho de Deus...
- Não precisa me lembrar... vai, pega. Vai tomar um café que você tá pregadão.
- Jááá só valeu!
Ao sair cambaleando seu filho, Divino passa a analisar com os olhos o tal pergaminho. Risca alguns nomes, sublinha outros... até que algo lhe chama muito a atenção. Eufórico, pega o telefone e disca 666 com urgência.
- Raulzito?
- Sim senhor, foi mal pelo moleque, mas ele insistiu tanto que não consegui negar...
- Tá bom, esquece, tenho algo sério a tratar. Sabe esse número 2235-A?
- Um minutinho... Sim, P. Barradas... que que tem ele?
- Qual o delito desse?
- Negligência. É o segundo cachorro que ele deixa morrer, e também desapareceu um gato.
- Evidências?
- Diz que viaja muito...
- Raul, libera esse cara aí.
- Sim senhor...
- E mais, esse aqui: D. Pimentel, número 8686-B?
- Esse aí... peraí... ah, suspeitam que anda com tendências neo-nazistas, inclusive visitando a terra do Füher...
- Meu, libera esse guri. Ele é mais santo que eu.
- Ahn, tá bom. Mais alguma coisa, senhor?
- Sim. Esses que pisaram em formiga, tacaram pedra na vidraça do vizinho, colaram chiclete na poltrona do professor... cara, todos esses delitos mais baixos são passíveis de revisão. Quero que mande todo mundo pro purgatório até eu decidir o que fazer.
- Sim senhor...
- Que bom, que bom. É só por enquanto. Paz.
Ao desligar, estica as pernas sobre sua poltrona e cruza os braços atrás da cabeça, fazendo menção de descansar. Alguns minutos depois, o telefone o desperta novamente.
- Que é agora?
- Perdão senhor, é o Raulzito de novo... posso esclarecer só uma dúvida?
- Manda...
- Tem um aqui, de número 4760-C... eu não sei como classificar...
- Delito?
- Ah, diversos... cegou uma vaga, quebrou espelho alheio, atrapalhou 97% das suas aulas...
- Só isso?
- Não, tem mais um em especial que me chamou a atenção...
- E qual seria?
- Ele andou fazendo uma interpretação sarcástica do novo testamento, inclusive usando todos os nossos nomes num texto bobo e de baixo calão. Parece que publicou num desses correios virtuais aí, e tem gente até de Israel dando uma lida...
- Hum... já te ligo.
O Divino levantou-se, foi até uma estante e retirou quatro livros. Passou os olhos em todos. Após, sacou uns relatórios de uma gaveta, e novamente os conferiu. Passados vinte minutos, saca o telefone e disca 666 mais uma vez.
- Sim senhor, alguma conclusão?
- É, Raulzito... esse aí não dá não.
- Entendo, senhor. Obrigado e até logo.
O Divino põe-se, então, na posição de descanso outra vez; porém, antes de pregar os olhos, inclina-se à estante. Tira o telefone do gancho.

4 comentários:

Liliane disse...

O Dr. Pastelina sempre foi muito criativo, mas a peça não era motivo para expulsão! Poderia ele ter mais um entre tantos diplomas.
Dei boas gargalhadas imaginando as cenas por ele descritas.
E quanto ao destino dos três meninos, não sei se concordo, mas quem sou eu para discordar do Divino!

Sergio Trentini disse...

Genial! hahahah wu continuo lendo sempre, só não comento mais pois leio do serviço pelo google reader! :)
Obrigado por sempre comentar nas minhas historinhas lá, luke! abraço!

Diogo disse...

Sinto-me honrado com minha singela participação.

Lucas Di Marco disse...

ATÉ QUE ENFIM TU VOLTOU!
Agora já posso postar de novo!
(tava preocupado!)