quinta-feira, 9 de setembro de 2010

A Tradição Secular

O concunhado de um conhecido de um amigo meu me foi apresentado num almoço tardio, durante o qual tomei nota de uma história secular de seus antepassados, que se resume a seguir.

Aqui é o "a seguir" mencionado no último parágrafo. E não menos localizado estava um dos primeiros nomes da família, que fora um dos garimpeiros que cedo chegaram na região, em meados do século XVIII. Diz-se que fora um homem muito especial, razão pela qual lhe foram atribuídos inúmeros casos - todos místicos. O velho era uma lenda.
E, por assim dizer, jurava-se na região até há pouco que, antes de partir, ele havia descoberto uma suposta caverna - ele mesmo a descrevia - a qual jamais fora encontrada. Visitava-a quase que diariamente, conquanto jamais tenha mencionado sua localização, e tampouco lhe perguntavam: conheciam-no bem. Certo dia, o velhinho sumiu por meses. Sem explicação, voltara dois dias antes de morrer, entregando ao filho mais velho um baú retangular de bom volume. Um caixote arcaico de metal denso, bordado a ouro nórdico e com o símbolo que se tornaria o então brasão da família. Ao entregá-lo, disse em claras palavras:
- Meu filho primeiro, não abrais este baú, jamais, sem apto julgamento. Repassai-o, sim, ao primogênito.
- Ora, porém, meu pai querido, que há dentro dele, se não lhe ouso ou abuso indagar?
- Qual! Eis o mistério, meu jovem. Que é já de todo vosso.

Sem dizer mais nada, partiu para sempre. Diz-se que morreu de "Dever Cumprido", de acordo com os
médicos da época. Ninguém discutiu o desejo do velho, nem mesmo o primogênito, um simples artesão de quem muito pouco se sabe, a não ser que cumpriu a tradição, passando o baú para o seu primeiro filho nos fins do século XIX.

Este último era o seu trisavô.Repassara para o bisavô, que tampouco teve a coragem de desafiar a tradição, passando, assim, para o avô, que, nos anos setenta, chamou o pai do sujeito e lhe fez sentar ao seu lado. Puxou o baú de dentro de outro, muito maior, que jamais ninguém havia visto aberto antes, exceto o dono. Nesta ocasião, seu pai tinha doze anos recém feitos. Seus olhos brilharam quando viram o ouro nórdico reluzente, apesar do aspecto bicentenário, sendo manuseado com cautela.
- Meu filho, este baú me foi passado por teu avô, que recebeu do pai, e assim foi por gerações e gerações.
- O que tem dentro, papai?
- Um mistério, filho. Guarde este baú como se fosse a sua vida, e só o abra se se sentir seguro o bastante para destruir uma tradição de gerações e gerações... guarde-o bem e, se for o caso, passe-o para o seu primeiro filho, repetindo estas palavras, que jamais devem ser ditas de novo até este dia chegar.
- Sim senhor...

Em 1988, nascia o tal concunhado. A primeira impressão que tive ao vê-lo foi a de que ele definitivamente é um cara corajoso. Ainda no almoço, o garçom fingiu não o ouvir, por pura birra, apesar de lhe ter chamado em alto e bom som por várias vezes, e sem faltar-lhe com educação. Tal comportamento lhe causou certa indignação: foi até o gerente do restaurante, que nada fez senão uma breve promessa de observação. Ele voltou até o lugar onde estávamos, sentou-se sem pressa e não fora mais alarmante do que uma formiga no tapete. Segundos após, o chão encontrava-se coberto de cacos de vidro, massas, molhos, carnes variadas e alguns tipos de salada. "Acho que ele vem, agora", disse com um mísero sorriso no canto da boca. Nada lhe foi cobrado.

Na virada do milênio, ainda criança, seu pai o fez participar do tradicional rito.
- Filhão... esse baú pertenceu ao teu avô, que ganhou do pai dele, que ganhou do pai, do pai, do pai do pai... e agora chegou a tua vez.
- Pode abrir?
- Não! Quer dizer, não sei... só se tu tiver coragem... mas eu acho que é melhor passar pro teu filho...
- Tá bom.
- Mesmo? Então tá, pega aqui e guarda bem, tá?
- Sim.

Ao se afastar, lembra-se bem, repetiu o piá para si mesmo:
- Eu não tenho filho!
E abriu.

A pergunta que estás fazendo a ti mesmo é a mesma que fizemos às 13h daquele dia, quando já havíamos chegado na casa do tal sujeito que nos contava tão magnífica história.
 
- E o que tinha dentro, caramba??!!
Um silêncio fez-se e dominou a sala. O cara levantou do sofá, foi até um dos quartos e, dois minutos depois, voltou com um embrulho na mão.
- Isso.
- O que é?
Ele tirou a toalha que cercava o objeto.
- É um outro baú, pouco menor, e um bilhete. Diz para eu entregar para o meu filho.

Segundo nos disse, não teve e nem terá coragem de abri-lo. Outrossim, já preparou um discurso bem impactante para que, no futuro próximo,  seu primeiro filho não encontre lacunas espertinhas sem antes lhe pesar a consciência.

8 comentários:

Liliane disse...

Sendo o jovem mancebo tão corajoso, deveria ter aberto o pequeno baú, comprovando a bravura, e não deixar a todos os teus leitores morrendo de curiosidade.
Já imaginei bilhões de coisas que lá podem estar e não cheguei a conclusão nenhuma....

Diogo disse...

Nada.

Lucas Di Marco disse...

Como assim, nada?

Diogo disse...

Não deve ser nada de valor. O valor é o mito.

Lucas Di Marco disse...

Diogo, sai da frente desse PC e vai tirar mais fotos, eu to me CONTORCENDO de vontade de ver asuhauh

Liliane disse...

Achei muito interessante tua conclusão Diogo. E muito provável, já que ao abrir o primeiro baú, apenas encontrou-se um outro...
Nada como um bom mito familiar!

Marcelo disse...

Também acho que o Diogo matou a charada

Lucas Di Marco disse...

Vocês tão achando demais e pagando de menos.

*estica a mão*