terça-feira, 13 de julho de 2010

O que te resta?

Como te sentes? Angustiado?
Bem vindo à realidade, e a culpa é tua. Mas não te incomodes; hás de te conformar, e quanto mais sofreres por tua incapacidade, mais culpado de tudo serás.
Ora, quem seja. A quem importa o nome? O prólogo, a musa inspiradora? O culpado és tu, leitor; tu e teus semelhantes. Olha bem ao teu redor: teus móveis, tuas teclas, o próprio tecido que te cobre as vergonhas; o quão teu tudo isso parece? Quando fizemos nós, da matéria, nossa escrava? A nota com que compras teu leite sintetizava a glicose que corre em tuas veias; o papel com que limpas tua sujeira dispusera de raiz, e quem se importa?
Não bastasse, sentes nojo. Ah, nojo! Nojo do pobre, do sujo, do infiel? Tens por aversão um ideal; tens por ojeriza uma mania; tens pelo asco simpatia; afinal, tens nojo de ti mesmo, infeliz! O verme que degradará tua carne podre é o mesmo que comerá o indigente. O fungo que criará nas tuas orelhas fétidas visitara já a boca negra do escravo. O verme não faz distinção. Por ser inconsciente. Pois se consciente fosse, evitar-te-ia; o verme é que deveria ter nojo de ti. Ah, quem dera fosse eu um verme!

Pena tenho eu de mim, e antes fosse asco à vida: ao contrário, a exalto! A vida não é o homem, e o homem tampouco a vida: esta sim nos distinguiu; tão pouco vivo somos, que não vemos em nosso reflexo um animal. Não admitimos de nós mesmos um selvagem. E o que somos pois? Apontai-me quando, no universo, no cosmos, enfim, a criatura modelou o criador? Pensas tu em gente? Por óbvio pensas, se é que pensas! O coacervado nos deu a luz, que originou primeiro o verme, a minhoca, o besouro, a lesma molenga, o lambari, o sapo gosmento, o crocodilo, a galinha, o rato e, por fim, o ser humano. A natureza tende a ciclos - e de fato os fecha, como por exemplo este, começando e acabando a criação da vida por vermes. Nada mais somos.

E pois perguntas-me: "e o amor?". Amor? Como ousas pronunciar tão eminente palavra com tua boca imunda? O esgoto, por ti criado, fez-se tal qual reza tua fé: à tua imagem e semelhança. O amor, portanto, não pode ter origem em teu corpo sórdido, em teu seio execrável, em teu ego porco. O amor, "sentimento humano", dá-se entre almas, e não entre pessoas. E não me venhas com religiosidade! Entende por alma a mente pura, e por corpo, os olhos traiçoeiros. Estes só são dignos quando transparecem o brilho interior. E o coração? Apenas um músculo cansado, tão útil quanto um marca-passo.


Canibal! És um canibal da pior instância. Pois se não comes carne, comes do próximo a vida toda. Comes do próximo o direito de sorrir, o direito de ser, o direito de comer e de ser comido pela natureza. Criaste a religião, criaste deuses para justificar o vazio que tens dentro de teu cérebro evoluído, que é tão grande quanto irregular de nascença. O que te resta senão a morte? O que te resta, covarde?

Quando estiveres no leito, lembrarás estas frases, e, com orgulho, num último suspiro repitirás: "não desejo voltar, não quero ser testemunha da vergonha que somos à memória do universo. E quando por fim derrubarmos a última árvore e poluirmos o último rio, desejo ser o carbono vingativo que a natureza em vossas faces humilhadas certamente há de jogar."

Só então - nos teus últimos segundos - é que serás humano de verdade.

18 comentários:

Jonas Kloeckner disse...

Texto impressionante. Saúdo-te pela irreverência e pela ousadia. Apontaste feridas incuráveis, crenças e credos (in)explicáveis; mexeste com a alma. Reflexão sem conclusão. Confusão. Resta-nos uma boa cerveja

Liliane disse...

Realmente impressionante. Profundo. Amargo. Verdadeiro em muito. Mas ouso, por ser uma otimista contumaz, acreditar que em algum momento a evolução do ser humano, de suas emoções e percepções, vai modificar este quadro e encontraremos uma forma de vivermos todos em harmonia e felicidade.

Marcelo disse...

Primeiramente, ótimo texto. Admito que fiquei incomodado ao lê-lo. Concordo com a Liliane quanto a modificação, e aproveito a deixa para divulgar:

Venus Project
http://www.youtube.com/watch?v=Cf1gZxmIDKw

Vale a pena ver!!!

Diogo disse...

Bah, Lucas, tu é muito bom.

tysy disse...

nem comento aqui pq a única coisa que me vem na cabeça quando leio teus textos é "PORRA! QUE GENIAL".. mas como tu me obrigou, tô aqui \o/ muito Saramago esse post, adorei :)

Marcos disse...

Um dos textos mais profundos que ja li.
Muito bom cara

David_R disse...

demais o texto e profundo....foda,gostei do ponto de vista do texto tbm

Unknown disse...

Bom, o luquinhas sabe que adoro texticulos......
kara bom texto, fico impressionado com a evolução dos teus textos, estás conseguindo te superar cada vez mais.....

MAX disse...

Andou lendo Augusto dos Anjos?
husauhassauh
muito bom velho!

Lucas Di Marco disse...

Pior que não. Mas foi uma interessante comparação, admito haushau

Abrazitos y gracias a todos mis amigos

Anônimo disse...

O sanguessuga

Anda, humanidade desgarrada,
come do chão que em vão te sustenta
No frio ciclo de uma página virada,
a mosca esmagada de ti se alimenta

Come, pois o dente a ti já foi dado
Rói a casca na qual foste chocado
Faz arder do berço marinho e salgado
as lágrimas que molham tua boca sedenta

Se dos céus fosses tu tinteiro
Não te temia queimá-lo inteiro
Num azul celeste tornado em lava

Cavaste a pobreza, nada te resta
Vomita no seio que não mais te presta
E aprecia a carcaça de quem te amava

P. Barradas, agosto de 2007.

Lucas Di Marco disse...

chocante. Agora só falta uma música e uma tela à óleo.

"Se dos céus fosses tu tinteiro
Não te temia queimá-lo inteiro"

Genial.

Anônimo disse...

O pai de um querido amigo ta providenciando a tela... mas tem um político interessado, já.

A. Pastelina disse...

Barradas,

Também estou interessado no quadro. Quando estiver pronto, mande-me uma foto que faço uma proposta.

Meu email é: dr.pastelina@yahoo.com.br

Lucas Di Marco disse...

Esse pastelina aí de cima é falso.
O verdadeiro pastelina jamais deixaria exposto seu email num blogue brasileiro.

Diogo disse...

Qualquer um que tenha lido as obras do magnífico Pastelina sabe que se trata de um impostor. O estilo do mestre é muito sofisticado.

Sergio Trentini disse...

Não tenho palavras. Tu melhora a cada texto. Se me perguntarem um dia quem são meus escritores favoritos falarei sem hesitar que entre eles está Lucas Barbosa de Ataides jr.

Fátima disse...

Bem lembrada a menção a Saramago e Augusto dos Anjos.Mas na verdade é apropriado para uma sociedade que está...hum,entre a UTI e a esperança da salvação, que com certeza está vindo, a prova é a consciência explítita em todos os comentários que li dessa postagem. Ah, meu jovem filósofo do século XXI, que por sinal encerra sua primeira década nesse 2010 que risca rápido o calendário. Reafirmo a frustação de não tê-lo tido como aluno, pois certamente minhas aulas de História teriam sido melhores. Mas saibas que entre os capítulos dos livros que estou lendo, abro espaço com prazer para ler tuas palavras que saem com a força de tua mente iluminada. Curvo-me com honra diante do meu Visconde e fico feliz por dizer: Conheço uma preciosa promessa que vem de Viamão, em é por isso que ainda creio em ti e nos que virão.